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domingo, 31 de outubro de 2010

CENTENÁRIO DA REVOLUÇÃO MEXICANA

A revolução mexicana (1910-1917)
                O México iniciou o século XX sob a ditadura de Porfírio Díaz (1876-1911). Nessa época, o México viveu um período de modernização econômica, caracterizado por reformas de caráter conservador, uma modernização conservadora, que atendia aos interesses da aliança entre latifundiários e imperialismo, principal elo de sustentação do governo ditatorial.
                Assim acelerou-se o desenvolvimento do capitalismo no México. Construíram-se estradas de ferro, desenvolveram-se os setores da agricultura e da mineração voltados para a exportação, intensificou-se o comércio externo e a indústria controlada por capitais estrangeiros, enfim, o México conheceu uma etapa de crescimento econômico sem, porém, transformações significativas no campo das reformas sociais – o desenvolvimento não visava à melhoria das condições de vida das massas populares e tampouco alterava a estrutura fundiária baseada no latifúndio.
                Para realizar essa política impopular, Díaz contava com o apoio de diversos setores elitistas do México pré-revolucionário: os políticos, a Igreja, o capital estrangeiro e os latifundiários, todos eles, beneficiados pelas reformas conservadoras do Porfiriato.
Os políticos, denominados de científicos (influência dos ideais positivistas tão em moda na época), consideravam ser a ordem (o governo autoritário) indispensável ao progresso. Classe corrupta, muitos deles enriqueceram com os contratos assinados com empresas estrangeiras.
  O papel do exército era de polícia do Estado, realizando a repressão interna contra quaisuer tentativas de insurreições populares ou de golpe. A ditadura controlava o alto oficialato, enquanto os soldados, muitos deles sob recrutamento forçado, sofriam privações e não possuíam qualquer espírito de tropa.
A Igreja se encontrava omissa diante dos desmandos do Estado ditatorial, amordaçada que fora por vantagens concedidas pela ditadura, à exemplo da plena liberdade para a fundação de ordens religiosas.
Uma das principais bases do Porfiriato foi sua aliança com o capital estrangeiro, que penetrou avassaladoramente no México nas três décadas em que Díaz exerceu sua ditadura. As estradas de ferro, a produção mineira (ouro, prata e cobre), a exploração petrolífera, os serviços de eletricidade e os bancos eram setores totalmente controlados pelo capitalismo internacional. Assim, “O capital estrangeiro foi acolhido desse modo por Díaz até que dominou a vida econômica da nação. Os norte-americanos e os britânicos eram os donos dos poços petrolíferos e das minas. Os franceses controlavam a maioria da crescente indústria têxtil e muitas das grandes lojas. Aos alemães controlavam o comercio de ferragens e drogaria. Os espanhóis eram donos de armazéns e comerciantes menores em outros ramos. Os serviços públicos (linhas de transporte, companhia de luz e força, companhia de águas) pertenciam a ingleses canadenses, norte-americanos e outros estrangeiros. Os mexicanos, inexperientes em tecnologia moderna, eram efetivamente estrangeiros na sua própria terra.” (HERRING, H. Evolución histórica da América latina – desde los comiezos hasta La actualidad. Tomo I. EUDEBA, Buenos Aires, 1972, p.378.).
Finalmente, os mais importantes aliados internos da ditadura eram os grandes proprietários de terras. Uma minoria de latifundiários possuía a maior parte de terras agricultáveis e campos de criação no México. Contava-se entre os grandes proprietários muitos estrangeiros, que, através das grandes empresas apropriaram-se das terras públicas e das não “amparadas a título legal”. Um terço das terras do México era controlado por empresas estrangeiras, enquanto que milhares de comunidades indígenas haviam perdido suas terras comunais (ejidos), o que aumentou o número de camponeses sem terras. Intensificou-se a exploração sobre os peões (trabalhadores rurais), continuamente endividados junto aos grandes latifundiários.
                Assim, não é de estranhar que a revolução mexicana de 1910 tenha sido uma rebelião contra o modelo de desenvolvimento capitalista baseado na aliança latifúndio-imperialismo. Esse capitalismo, dependente dos interesses norte-americanos e europeus, não favoreceu a formação e a consolidação de uma burguesia mexicana, independente, mas sim subordinada aos interesses estrangeiros. A revolução mexicana pode ser considerada como um movimento democrático e burguês, liderado pela pequena-burguesia, com um forte conteúdo popular (anti-latifundiária) e nacionalista (antiimperialista) que visava inaugurar uma nova etapa no desenvolvimento capitalista do México.

A ascensão de Francisco Madero 
                Se no plano socioeconômico as condições para a queda de Porfírio Díaz estavam dadas, no âmbito político elas foram construídas na medida em que a ditadura aprofundou sua modernização conservadora. Enquanto as elites dominantes reforçavam seus acordos e lucros, o povo não estava apático. Ao mesmo tempo em que a modernização conservadora avançava, cresciam novos grupos sociais que apoiariam a revolução. Nas cidades havia um incipiente proletariado urbano, influenciado por ideias socialistas e anarquistas. Daí vieram os primeiros sinais de mobilização, sob a forma de greves, que foram brutalmente reprimidas pelo governo de Díaz. Em 1900 foi fundado o Partido Liberal Mexicano que, embora clandestino e perseguido, publicou em 1906 um manifesto à nação em que pedia a derrubada de Díaz e propunha um programa de reformas econômicas, políticas e sociais.
Reforma, liberdade e justiça!
(Manifesto do Partido Liberal Mexicano, 1906)
                        Em 1908 surgiu a Sucessão presidencial de 1910, obra escrita por Francisco Madero, originário de uma família de latifundiários do Norte e que seria conduzido posteriormente ao poder (1911) pela revolução vitoriosa.
Entretanto, ganhava terreno, sobretudo nas grandes cidades – entre científicos, católicos, ricos proprietários e grupos da pequena burguesia – a campanha pela reeleição de Díaz para Presidente (pela sétima vez consecutivas). Toda a máquina oficial foi mobilizada para a fórmula continuista, que contava com vários jornais.
Em 1909, as forças de oposição ao regime porfirista, destacando-se Francisco Madero, fundaram o centro anti-reeleicionista do México. Aos poucos a opinião pública se dividiu entre partidários de Díaz e aqueles que apoiavam Madero.
A atitude do grupo de Madero em lançar a sua candidatura à Presidência foi precipitada pela declaração de Díaz pretendendo reeleger-se em 1910, contrariando as afirmações que fizera em 1908 a um jornalista norte-americano, em que dizia da sua intenção de deixar o governo ao fim do seu mandato.
A maioria das teses oposicionistas, entretanto, foi superada pelos rumos que tomou o movimento revolucionário de 1910 a 1917. Para a pequena burguesia das cidades, de que Madero era porta-voz, a tática eleitoral, a principio, consistiu em fundir a candidatura do General Díaz para a presidência e assegurar a Vice-Presidência para um elemento do Partido Anti-reeleicionista. Como o velho ditador já contava com quase oitenta anos, o Vice-Presidente eleito seria seu legítimo sucessor e, gradualmente, poder-se-iam realizar as reformas propostas pelos democratas.
Uma fracassada entrevista entre o ditador e Madero, em 1910, na qual Díaz, intransigentemente, recusou o nome deste para a Vice-Presidência, foi o estopim para a radicalização. Decidindo-se pela oposição franca e aberta ao porfirismo, o grupo maderista começou a sua pregação política por todo o país, dirigindo-se aos operários e aos peões dos povoados.
Acusado de incitar o povo a rebelião, Madero foi preso, enquanto se realizavam as eleições que, obviamente, deram a vitória a Díaz. Obtendo a liberdade, Madero fugiu para o Texas, onde foi publicado o plano São Luís Potosí, em 1910, exigindo a renúncia de Díaz e eleições livres. A atividade eleitoral transformava-se em agitação revolucionária.
Finalmente, em 1911, a manutenção do velho ditador provocou a revolta generalizada. O povo tomou as armas, ocupou ruas e prédios públicos. Batalhões se rebelaram e se juntaram as barricadas rebeldes. Nos tiroteios da capital, pouco soldados tinham coragem de apoiar o velho ditador. Porfírio Díaz abriu o cofre, encheu as malas e pegou um navio para a França.
Revolução de liberais e camponeses
                O novo presidente do México era Francisco Madero, fazendeiro, dono de minas, estudou na Europa e nos EUA e representava a burguesia liberal.
                Contudo, a revolução que o colocou na Presidência não era apenas burguesa, era camponesa. No momento em que Madero assumiu a presidência, milhões de camponeses pegaram em armas, formaram exércitos e marcharam fazendo uma exigência: reforma agrária. Seus principais líderes eram Zapata e Pancho Villa. A Revolução liberal que derrubou o governo oligárquico de Porfírio Díaz, também abriu espaço para os camponeses e Madero não conseguiu controlá-los.
                Inicialmente, Zapata apoiou Madero. Mas logo percebeu que a burguesia liberal não estava disposta a aprofundar as reformas sociais. Rompido com Madero, lançou o plano de Ayala, um manifesto que exigia imediatamente a reforma agrária. Nas minas, nas fábricas, nas unidades de extração de petróleo, os operários entraram em greve e exigiram direitos.
                Aqui vamos encontrar a primeira desavença entre as forças revolucionárias. O conflito entre o liberalismo e as demandas sociais. Madero acreditava que os objetivos da revolução já tinham sido atingidos, pois o México passaria a contar com instituições democráticas que poderiam atender os desejos reformistas da sociedade, principalmente do camponês. Para tanto recomendava a desmobilização das forças revolucionárias. O mesmo não pensava Zapata que não acreditava na possibilidade de se fazer reforma agrária sem estar-se em posse de armas. Este atrito, somado à rebelião de Pascoal Orozco no Norte, colocou Madero na dependência da camarilha militar porfirista não depurada pela revolução. Assim, as forças chefiadas pelo General Huerta (antigo militar porfirista), assumem o governo.
O governo de Huerta
Para a maior parte dos revolucionários, a restauração do porfirismo pelo gen. Huerta era intolerável. O Governador nortista Carranza, não reconheceu o novo governo e deu início à mobilização contra Huerta. O mesmo fez Villa no Norte onde reativa a sua célebre "Divisão del Norte" e Zapata no sul com seus índios. Forma-se o exército constitucional que visa restabelecer o maderismo, sob liderança de Venustiano Carranza (Pacto de Torreón).
Constitucionalistas contra os camponeses
Novamente o confronto de Zapata e Madero se repete. Agora é Carranza que se vê em dificuldades em aceitar as propostas camponesas. Mesmo assim é obrigado a enviar à Convenção um decreto de reforma agrária.
Apesar do acordo entre Villa e Zapata, estes não conseguem coordenar uma ação em conjunto. Carranza reorganiza as forças militares e derrota Villa e Zapata ao mesmo tempo que estabelece a pena de morte contra trabalhadores grevistas (1915/06).
Simultaneamente à revolução generalizada contra seu governo, Huerta ainda conhece a humilhação de uma ocupação americana do porto de Vera Cruz. Sem condições para resistir, Huerta renuncia em junho de 1914.
O fim das lideranças camponesas
Depois de serem derrotados pelos constitucionalistas sob o comando de Álvaro Obregón, vilistas e zapatistas entram em decomposição. Mal conseguiam manter suas lideranças em seu último reduto (Villa em Sonora e Zapata em Morellos). Carranza procurou neutralizar essas poderosas lideranças, ordenando o assassinato de Zapata (o que foi feito em Chinameca, em 1919) e o acomodamento de Villa, que recebeu uma respeitável fazenda (sendo assassinado posteriormente, em 1923, provavelmente a mando de Carranza).
Mas os constitucionais compreendem perfeitamente que não poderiam desconhecer a questão agrária que estava no fundo da luta revolucionária. Os latifúndios foram limitados e a terra começou a ser entregue às comunidades camponesas.
A constituição de 1917
Após a neutralização das lideranças camponesas e da oligarquia, Carranza encontrou as condições para a aprovação de uma nova constituição que se tornou o documento máximo da Revolução de 1910. Foi considerada como uma das mais modernas e liberais Cartas Magnas da América Latina. Interessa-nos particularmente os artigos 30, 27, 123 e 130 que no seu conjunto estabelecem:
·       O ensino laico, ao encargo do estado preservando-se ainda um setor privado.
·       A expropriação de terras não cultivadas em favor dos ranchos e dos peões.
·       Fixação das relações entre Capital e Trabalho, como por exemplo, a jornada de 8 horas, regulamentação do trabalho do menor e da mulher, salários iguais para tarefas iguais, direito de greve, organização sindical, justiça do trabalho para arbitrar os conflitos entre o Capital e o Trabalho.
·       Restrição do poder da Igreja. O casamento civil foi tornado obrigatório e o único válido. A secularização do clero, transformando os padres em trabalhadores comuns.
Esta constituição foi juridicamente uma obra de síntese entre a grande tradição liberal (separação da Igreja e do Estado, laicização do Estado) e a emergência do Estado populista (o estado regulador dos conflitos e ao mesmo tempo paternalista para com os assalariados).
A estabilização da revolução
Com o assassinato de Carranza em 1920, o poder refluiu para dois caciques militares que haviam sido os bastiões do constitucionalismo, os generais Obregón e Calles. No período que se segue houve uma momentânea atomização do poder com a emergência de caudilhos militares provinciais. Em sua luta contra Villa e Zapata, Carranza foi obrigado a ceder poderes a chefes federais que atuavam com independência do poder central, apesar de formalmente se proclamarem fiéis à unidade e ao constitucionalismo. A oportunidade para reunificar o país e implantar a centralização revolucionária surgiu quando ocorreu a rebelião do caudilho militar Huerta. O fracasso da rebelião serviu de pretexto para que o Obregón e Calles exterminassem fisicamente toda a alta hierarquia militar do exército mexicano (1923). Eliminou-se, assim, um foco de ambição e de instabilidade que as camarilhas militares tanto produzem na história da América Latina.
A morte de Zapata, assassinado em 1919, e de Pancho Villa, morto em 1923, foi um golpe duro para os camponeses. O governo norte-americano pressionava para que  as reformas fossem implantadas rapidamente, a fim de evitar novos problemas. A Igreja Católica, por sua vez, exercia pressão sobre o governo, porque desejava recuperar o que havia perdido. Tudo isso levou o processo revolucionário praticamente ao fim.
Em 1929 foi criado o Partido Nacional Revolucionário (PRN), resultado da unificação das diferentes correntes revolucionárias, e que seria a base do Partido Revolucionário Institucional (PRI), criado em 1946. Essa mudança implicou o abandono dos princípios revolucionários de 1910.
Apesar da significativa reforma agrária implementada pela Revolução, com o tempo os camponeses perderam muitas terras que haviam conquistado. As dificuldades em conseguir uma produção em larga escala e a baixo custo, as dívidas bancárias, a concorrência dos produtos agrícolas norte-americanos e a maior mecanização das propriedades mais modernas acabaram por inviabilizar a pequena propriedade. O PRN, depois transformado em PRI, obteve, a partir de 1929, o controle da polícia, burocracia estatal e sindicatos; nacionalizou o petróleo com a PEMEX, sob o governo do populista Lázaro Cárdenas; criou monopólios privados nos setores de comunicação e telefonia, em meio ao nepotismo e à corrupção; realizou a reforma agrária (embora limitada) e afastou os militares da política, mantendo uma fachada democrática.
Essa ditadura perfeita (definição do escritor peruano Mario Vargas Llosa) era, periodicamente, referendada por votações em que prevaleciam o voto de cabresto e fraudes, garantindo-lhe a presidência, os executivos estaduais e a maioria no Legislativo.
A abertura política possibilitou que as pressões sociais aumentassem, durante a instabilidade econômica da década de 1980. Na eleição de 1988, Cuauhtémoc Cárdenas, dissidente do PRI, venceu nas urnas, mas foi derrotado por fraude na contagem oficial. O presidente Carlos Salinas (1988-94) empreendeu medidas neoliberais, abrindo o mercado e integrando mais o México aos EUA. Embora modernizador, o reformismo não evitou nova crise financeira e o aumento da corrupção, ligada ao narcotráfico.
Em 1.o de janeiro de 1994, explodiu em Chiapas uma rebelião liderada pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional, que exigia mudanças na distribuição da terra e dos benefícios sociais para a população mais pobre. Os rebeldes se auto-denominavam zapatistas em referência a Zapata, símbolo da luta social da Revolução Mexicana.
O EZLN tomou o palácio de governo e sublevou o pobre estado de Chiapas, exigindo .pão, saúde, educação, autonomia e paz para os camponeses, em sua maioria indígenas. Era, também um protesto contra o início do Nafta (Acordo Norte-Americano de Livre Comércio), que agravaria, em sua opinião, as condições de vida das camadas populares.
No governo de Ernesto Zedillo (1994-2000), a crise financeira e a desigualdade socioeconômica acentuaram-se, o PRI revelou-se incapaz de resolver os problemas e a oposição ganhou espaço nos estados e municípios. As reformas políticas garantiram mais liberdade, as regras eleitorais foram modificadas e a escolha do candidato do PRI mudou, com a substituição do dedazo (indicação) pela eleição interna no partido. Coordenadas por uma instituição independente do governo (Instituto Federal Eleitoral) e fiscalizadas por milhares de mexicanos e estrangeiros, as eleições de 2000 foram marcadas por uma disputa acirrada entre o candidato priista Francisco Labastida e o oposicionista Vicente Fox, do Partido de Ação Nacional (PAN). A vitória de Fox pôs fim ao monopólio do PRI.
O novo governo deve continuar o processo de reformas neoliberais, modernizar a máquina estatal, privatizar o setor elétrico e as ferrovias, ampliar o debate sobre o destino da PEMEX e, principalmente, avançar nas questões sociais. Se o futuro é imprevisível, ao menos tem-se uma certeza: a velha oligarquia de dinossauros e os tecnocratas do PRI perderam sua hegemonia.
Por outro lado, a luta dos camponeses mexicanos pela terra se estende até os dias atuais,  como acontece, aliás, em outros países da América latina, inclusive no Brasil. No México, essa luta continua a ser impulsionada pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional, na província de Chiapas. 

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

MODERNIDADE, GLOBALIZAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL

Modernidade, Globalização e Diversidade Cultural

Bernardo Fernandes (Graduado em História pela UFPB).

1. O Homem racional e o Cidadão da modernidade
O período em que vivemos é marcado por diversas transformações em todo o mundo. As formas de vida bastante rígidas ou severas que eram utilizadas para regular as relações em sociedade, vêm sendo, pouco a pouco, desgastadas. Isto traz diversas  conseqüências no dia-a-dia das pessoas. É, pois, um momento de crise nestas formas de vida. Esta crise atinge um dos princípios a que a humanidade dava
tanto valor, desde os inícios da modernidade: a racionalidade. Com a crítica ao pensamento teológico medieval e a atitude otimista diante da
vida, provocada pelo Renascimento, as grandes invenções, as grandes navegações e descobertas e, sobretudo, com a formação do capitalismo,
a razão foi sendo progressivamente valorizada como a característica, por excelência, da condição humana: o Homem como animal racional. Não
foram os modernos que inventaram isto, a filosofia grega já havia apontado a razão como um elemento constitutivo do ser, da identidade
humana. Mas, com a modernidade, foi sendo aprofundada a compreensão sobre a razão, que foi elevada a uma importância jamais
atingida antes, passando a ser considerada guia para transportar o homem à felicidade, na medida em que possibilitaria ao ser humano a
oportunidade de libertá-lo do jugo do próprio homem e da natureza.
Com base no princípio da racionalidade, o Homem se libertaria das forças incontroláveis da natureza e de forças sobrenaturais, mediante o
desenvolvimento das ciências e das técnicas. Também se libertaria do jugo de certos homens (seres humanos) sobre outros: esta crítica era
diretamente dirigida aos poderes absolutistas, dos reis e príncipes. O Homem alcançaria a sua liberdade contra a opressão.
Nesta nova forma de pensamento, durante a modernidade, a razão era considerada um atributo, uma qualidade de todo ser humano,
portanto, absoluta e universal, acima de todas as diferenças e particularidades culturais. Portanto, tinha uma característica bastante
única, ou seja, a pretensão de sua validade para todo o mundo, de uma forma única, o que propiciou um excesso de confiança nas capacidades
que esta qualidade humana poderia vir a possuir, tendo como objetivo trazer segurança através do controle total da natureza e da sociedade. A
universalidade da razão foi expressa através de leis científicas e morais, tidas como a condição para a busca em direção à libertação humana
pretendida. As formas de ordenamento dos fatos, realizadas pelas ciências exatas, começaram a ser pensadas para ordenar os fatos
sociais.
A partir do princípio da racionalidade, julgava-se, então, possível realizar um planejamento social, que pretendia acabar com todas as
diferenças existentes na sociedade, a partir dessa concepção geral de Homem e de Cidadão, uma espécie de padrão ou modelo que passou a
orientar os comportamentos sociais. Comportamentos que não estivessem dentro desse padrão, eram recriminados, considerados
irregulares e combatidos. Por exemplo: mulheres de classes populares, que conheciam as propriedades curativas das plantas, foram
consideradas bruxas, muitas delas condenadas á fogueira, porque teriam, segundo seus algozes, pacto com forças misteriosas da
natureza, consideradas diabólicas pelo conhecimento autorizado da época. Outro exemplo: as greves operárias, que também foram
criminalizadas. Em outras palavras, buscava-se enquadrar os hábitos e costumes sociais na uniformidade do modelo de ser humano e de
cidadão. O que e quem não se enquadrassem, era considerado irregular, desviante, anormal.
Desse modo, instaurou-se uma ordem social estruturada e pretensamente organizada segundo um certo modelo que deveria ser
obedecido porque traria uma “paz social”, sem conflitos, uma vez que todos estariam de acordo com o modelo de conduta. Um modelo de
sociedade que tentava eliminar as diferenças e os conflitos delas provenientes. Acreditava-se, de acordo com essa concepção, que a
sociedade caminharia para o progresso sem conflitos, em ordem, sob o controle de confrontos que pudessem gerar insegurança e ameaças.
As conseqüências deste modelo não tardaram a aparecer.
2. As críticas ao modelo de Cidadão da modernidade
Denúncias a esta forma de regulação social passaram a ser freqüentes, ao se constatar que a visão/concepção universalista de
Homem e Cidadão, sob a invocação de uma razão universal e imparcial, válida para todos, portava um autoritarismo: na prática, a lei da
igualdade de todos perante a lei não valia (e ainda não vale) para todos, indistintamente. Continuavam a vigorar os privilégios que tanto se
criticara no Antigo Regime. A burguesia, que se juntara às camadas populares para combater tais privilégios da realeza, da nobreza e do
clero, depois de tomar o poder do Estado – nas revoluções liberais da Inglaterra, no século XVII, na Independência norte-americana, na
Revolução Francesa – se esquecera do povo e arrogava o poder só para si.
A racionalidade também esteve presente nas intenções dos movimentos revolucionários do século dezenove, que propunham uma
organização da sociedade de forma a diminuir as desigualdades sociais que se acentuaram com o desenvolvimento do capitalismo, que criou
condições de vida desumanas para grande parte das pessoas. A Comuna de Paris foi um exemplo disso, a primeira experiência moderna
de um governo realmente popular, e voltado para os interesses destas camadas populares. Durou algo em torno de quarenta dias, sendo
massacrada pelas forças militares francesas em conjunto com as alemãs. Descendente direta da Comuna de Paris, a revolução
bolchevique realizada na Rússia também propunha uma racionalização social, radicalizando ideais difundidos pelos movimentos anteriores.
Assim como na França, foi derrubada na Rússia uma aristocracia detentora de um poder absoluto e que, há séculos, governava o país.
Logo, os efeitos nocivos da racionalidade começaram a aparecer, tornando o regime instalado na União Soviética autoritário. Mas a
racionalidade chegou ao seu ápice de desumanidade e crueldade no nazismo, um regime com uma intensa organização burocrática que
pretendia realizar um sistemático extermínio de etnias e de formas de vida que eram considerados inferiores pela ciência e dispendiosas para
o Estado Alemão. As virtudes da razão eram exaltadas, tudo era planejado em termos de custos e benefícios. Desprezava-se a moral e os
valores individuais, pois estes seriam aspectos da irracionalidade e não eram úteis ao tipo de sociedade que se pretendia implantar. A
racionalidade perpassava todos os discursos do século XX e criava muitas mazelas para a humanidade. Os últimos anos sessenta, do século XX, foram marcantes no que diz respeito às críticas a esse modelo de racionalidade. Houve, nesta época, diversos movimentos de contestação, que emergiram em todos os continentes. As novas formas de perceber o mundo já não se adequavam mais aos modelos de pensar e agir, então existentes. A
crítica à modernidade, de forma geral, baseou-se, a partir daí, em uma crítica contra a sua necessidade de controle rígido da natureza, este
controle que fazia pensar no poder do Homem em garantir a prevenção de eventuais acasos e garantir a sua felicidade. A História mostrava que
essa concepção de ser humano, de cidadão e de mundo não era realizável, pois não havia conduzido à paz social: ao contrário, trouxera
crises, conflitos, guerras, ameaças do apocalipse nuclear, produzindo a sensação de proximidade com o extermínio da Humanidade. O modelo
de sociedade da modernidade mostrava indícios de esgotamento. A felicidade, segundo os padrões modernos, passou a ser considerada um
projeto irrealizável.
O paradigma moderno e universal de pensar o mundo e nele agir, de controlar e planejar a sociedade, começou a passar por um
sério desgaste. Novos movimentos libertários estavam surgindo, contra os que levavam a organização racional e científica às últimas
conseqüências. Desenvolveu-se, neste momento, um descrédito em relação a essas maneiras de organização como um meio de intromissão,
por meio de um discurso autorizado e autoritário, na vida das pessoas. 

3. Novas formas de pensar o mundo e nele agir
Essas críticas conduzem a uma nova maneira de perceber o mundo, proporcionando, também, novas formas de agir sobre ele. Com
o declínio da sociedade planejada, que impunha uma cultura dominante, baseada nos critérios já analisados, há a possibilidade de
um aperfeiçoamento da sensibilidade para que se percebam as características particulares e as necessidades das pessoas e dos grupos
que formam a sociedade. Muda-se o foco de atuação, pensa-se agora nas várias micro-comunidades, com suas experiências próprias e
demandas particulares, que formam o corpo social. Os movimentos em favor dos Direitos Humanos, que estavam
em alta nesse período, levaram adiante uma severa crítica a esses modelos de ação propostos pela modernidade, que desprezavam as
experiências humanas particulares, fazendo com que fosse reinvocado para o centro das preocupações dos estudos sobre a sociedade aquilo
que a modernidade, em larga medida, ignorara: o ser humano. A modernidade privilegiara o ser humano burguês, como o modelo
perfeito de humanidade no capitalismo. Essa nova perspectiva buscava que o humanismo permeasse os estudos da sociedade. As tendências
autoritárias da racionalidade foram, a partir de então, sendo derrubadas. É esse contexto que traz as condições para a existência de
uma sociologia voltada para problemas que dizem respeito ao humanismo, com fortes reflexões a respeito da diversidade da vida
humana. É a partir dos anos de 1970 que estas críticas começam a tomar dimensões mais aprofundadas, é nesse período, também, que a
globalização é intensificada. Essa nova sensibilidade com relação à diversidade social vai ser desenvolvida, principalmente, de duas
maneiras. A primeira, vinculada às novas necessidades do capitalismo contemporâneo; e outra, que leva em consideração as necessidades dos
grupos excluídos da sociedade moderna, que possuem demandas de primeira necessidade a serem supridas.
É no período posterior aos anos setenta (1973) que o capitalismo passa por uma forte transformação. O mercado, não mais planejado
para produzir, padronizadamente, mercadorias para todos (produção de massa), passa a atender os micro-grupos sociais em suas
peculiaridades, como se pode ver no desenvolvimento de produtos particulares para determinados grupos sociais. Observamos isso, por
exemplo, em mercadorias voltadas para determinados públicos. As modas passam e as mercadorias devem acompanhar os novos rumos
que o mercado define. O fordismo, até então, predominante no modelo de produção de mercadorias, sustentava uma produção de massa com
operários pouco qualificados.
O pós-fordismo (toyotismo) exige uma produção especializada (para os mais distintos grupos sociais em suas características
particulares) e qualificada. As novas tecnologias, decorrentes da revolução tecno-científica que estava acontecendo, também a partir dos
inícios dos anos sessenta, adotam máquinas adaptadas, que atendem a demandas de grupos particulares, produzindo em um curto espaço de
tempo, para que haja uma maior circulação de mercadorias, o que favorece os lucros das empresas. Com isso, tem-se a possibilidade de se
adaptarem as modas a comunidades e grupos etários diferentes, através de pesquisas de mercado previamente encomendadas. A
especialização na produção de mercadorias exige que os trabalhadores estejam atualizados em relação às novas tecnologias, sendo o modelo de
organização fordista não mais eficaz para atender os interesses novos que surgiram.
Através da globalização, este modelo de produção pode ser expandido em todo o mundo, sendo essas transformações de
fundamental importância para que o capitalismo voltasse a se fortalecer; O Estado nacional, de regulador da sociedade, diminui a sua
intervenção no mercado, enxugando as suas responsabilidades em relação à sociedade, o que limita a possibilidade de regulamentação e
seguridade social e contribui para o aumento das desigualdades.
Mudanças legais e institucionais são levadas adiante para atender às exigências do mercado. Há, pois, uma séria limitação da atuação do
Estado na sociedade para que este possa diminuir as responsabilidades em relação à mesma, deixando “que as coisas aconteçam no mercado,
este proporcionará oportunidade para todos.” Este é o discurso do sistema capitalista. A afirmação das diferenças e particularidades está
de acordo com essa nova forma de produção de mercadorias que torna bastante comum a cultura do consumo que movimenta o capitalismo.
Isso é proporcionado, principalmente, pelo capitalismo americano, que, juntamente com a circulação de suas mercadorias, promove, também, a
circulação de sua cultura.
A Pós-Modernidade é a fase histórica correspondente a essa forma de organização econômica e cultural, que produz um avanço no
mercado consumidor. Essa exaltação da fragmentação e da diversidade sociais não dá respostas satisfatórias às pretensões éticas e políticas
compromissadas com o fim das injustiças sociais, pois, de uma forma sutil, continua a existir uma regulação social pelo consumo. Aquele que
não tem capacidade de consumo, é excluído e destinado a viver em bairros habitados por uma imensa parcela segregada. A regulação
social promovida pela pós-modernidade exclui os que não têm dinheiro do direito à cidadania. O estímulo às diferenças, que é promovida hoje
em dia, possui interesses comerciais. Pode-se perceber como esse modelo de globalização funciona ao voltar-se o olhar para a África,
extremamente empobrecida, que não tem acesso aos bens de consumo nem aos investimentos que outros lugares do mundo possuem.
Com a globalização, os grupos sociais passam a reafirmar suas identidades locais. Na modernidade, os países desenvolvidos atribuíamse
uma missão civilizadora. Ao se tornar injustificável a forma como se vinha tentando expandir o modelo de civilização, cria-se espaço para
que se apareçam estas particularidades locais, que antes eram silenciadas. Esses grupos são incorporados de uma forma mercantil ao
sistema capitalista globalizado. Devido ao poder econômico e à supremacia econômica dos países desenvolvidos, há uma grande
desigualdade nas trocas de mercadorias entre os mais diversos lugares do mundo, com o privilégio de determinado local, que impõe o seu
localismo aos demais. Essa imposição, levada adiante através do mercado, globaliza, também, as características culturais de quem
possui maior poder. Um exemplo disso é a quantidade de referências que fazemos a manifestações culturais que são típicas da cultura norteamericana
como música, hábitos alimentares, expressões da língua, símbolos, festas, comportamentos etc. Desta forma, cria-se uma
inclusão e uma integração entre diversas localidades do globo, mas esta é uma integração vigiada por um poder superior representado por um
país ou conjunto de paises poderosos.
Esse poder econômico dita as regras do jogo, que consistem na hegemonia de um discurso único (“fora da globalização, não há saída”),
ditado pelos que se beneficiam da situação atual, que encontra formas de se legitimar e garantir apoio de uma opinião pública. Estas empresas
sustentam uma imensa máquina publicitária que é estruturada para atender a seus interesses. Há uma ascensão de uma burguesia cada
vez mais globalizada que transita por todo o mundo em busca de espaços que se adaptem àquela proposta que atenda a seus interesses.
Esse modelo de globalização é levado adiante por diversas instituições financeiras que, reunidas em Washington (EUA) e em outros grandes
centros financeiros mundiais, criam certos modelos de conduta para os países em desenvolvimento que, por sua vez, buscam apoio e recursos
financeiros nestes organismos internacionais, criando-se um círculo vicioso.
Na busca por alternativas que solucionem as injustiças sociais, deve-se criar um outro modelo de sociedade que questione toda essa
organização econômica e social que atende aos interesses de uma minoria, de forma que a globalização seja transformada em um espaço
para que as trocas culturais (já citadas anteriormente) ocorram de forma justa e igualitária. Para isso, condições básicas de cidadania
devem ser asseguradas, de maneira a garantirem que sejam democratizados os recursos essenciais à manutenção de uma vida
digna (direito à saúde, educação, alimentação, moradia, emprego, lazer, etc.), criando-se políticas públicas que interfiram no processo de
“mercadorização” dos meios necessários à sobrevivência. Isso quer dizer: não deixar que tais recursos só estejam ao alcance de quem pode
pagá-los; e que sejam garantidos publicamente, para todos, como possibilidade para que se promovam melhorias sociais. A organização
imposta pelos países que constituem a hegemonia do atual processo de globalização, tende a privatizar esses recursos e serviços. Com a
implantação destas medidas de ampliação de políticas públicas, procura-se reverter o constante declínio da organização republicana do
Estado. O republicanismo é sinônimo de coisa pública, pertencente a todos, de que todos, de maneira igualitária, podemos e devemos fazer
parte.
Atualmente, predomina o critério de capacidade de consumo para identificar o cidadão. Essa visão empobrecedora, desmobilizadora
e despolitizadora, reduz o significado de Cidadania. e compromete, assim, o seu significado multidimensional e o espírito público do
cidadão, possuidor de direitos e deveres. A luta pelos Direitos Humanos garantidos para todos e para que todo cidadão seja educado
em uma Cultura de Direitos Humanos reinventa a Cidadania, forma pessoas ativas e participantes nos rumos da sociedade de que faz parte.


segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Cidadania na História do Brasil

A evolução da cidadania no Brasil: brevíssima introdução

Por Dejalma Cremonese[1]

Resumo
Este artigo apresenta uma leitura sobre a evolução histórica do conceito cidadania: desde as civilizações clássicas (greco-romanas), passando pelas conquistas dos direitos naturais do homem liberal burguês moderno, até a difícil construção da cidadania no Brasil. Entendida e utilizada de maneira diversa no decorrer da história, a cidadania está essencialmente ligada a conquista de direitos: para os gregos ela representava a igualdade entre os cidadãos (homens), o direito de participar da polis e exercer a democracia; para os modernos estava ligada ao direito à vida, à liberdade, à propriedade e ao sufrágio universal (direitos civis e políticos); nas sociedades desenvolvidas do século XX completa-se o ciclo das conquistas com os direitos sociais. No Brasil, a conquista dos direitos não seguiu a lógica nem o tempo cronológico das sociedades desenvolvidas: aqui, tardiamente surgem os direitos individuais e políticos (1824), por fim, os direitos sociais são conquistados (década de 30 e 60), exatamente quando os direitos civis e políticos foram negados.


Palavras-chave
Cidadania, direitos, democracia

Abstract
This article presents an overview about the historic evolution of the citizenship concept: from classic civilizations (Greek-Roman), passing through the liberal modern bourgeois man natural right conquests to the difficult citizenship construction in Brazil. Understood and utilized in different ways along the history, the citizenship is essentially connected to right’s conquests. For the Greeks, it represented the equality between the citizens (men), the right to participate in the Polis and exercise the democracy; for moderns it was connected to the right to life, freedom, property and the universal suffrage (civil and political rights); in the developed societies of the 20’s century the conquest cycle gets completed with the social rights. In Brazil, the right’s conquest did not follow the logic nor the chronologic time of the developed societies: here, the individual and political rights appear delayed (1824), finally, the social rights are conquered (decades of 30 and 60), exactly when the civil and politic rights had been denied.


Keywords
Citizenship, rights, democracy

Introdução
                                         
Falar na construção da cidadania no Brasil é tocar num ponto nevrálgico da nossa história. Passados mais de 500 anos da chegada dos portugueses por estas paragens, percebe-se que a consolidação da cidadania ainda é um desafio para todos os brasileiros. Muito se tem discutido na academia e fora dela, o jargão da cidadania está na moda nas instituições políticas e na opinião pública, mas, concretamente, é um conceito ainda a ser construído.
Após a ditadura militar (1964-1985), pensava-se que, finalmente, os ares da democracia e da cidadania iriam pairar no cenário político-social nacional. No entanto, a democracia poliárquica descrita pelo cientista político Robert Dahl (2001), (eleições livres, partidos políticos consolidados, Congresso Nacional autônomo), não garantiram avanços significativos e a democracia social (igualdade étnica, emprego, saúde, lazer, moradia...) ainda é utopia para milhões. Prevalece apenas uma democracia eleitoral sobre a democracia social (cidadã). Por essa razão, as instituições políticas e os políticos têm passado por um alto descrédito junto à opinião pública do país. Da mesma forma, a cidadania é incipiente num país onde predominam a exclusão social e econômica, a desigualdade social e a violência difusa.
Frente a essa situação, pergunta-se: quais os principais obstáculos para a construção da cidadania brasileira? A difícil construção da cidadania no Brasil está ligada exclusivamente ao “peso do passado” (herança maldita), ou outras variáveis podem influenciar essa realidade? A cidadania está meramente ligada à conquista de direitos sociais, civis e políticos? Como se deram as conquistas desses direitos no Brasil, comparadas com outros países? Procurar responder a algumas dessas questões é o objetivo maior deste artigo. Para tanto, recorremos à fundamentação teórica de autores das Ciências Sociais, reconhecidos estudiosos do tema.
O artigo está dividido em três seções específicas. A primeira seção trata da origem do conceito “cidadania” no contexto histórico-cultural e político dos gregos, especificamente, por volta do ano 380 a.C. (período do apogeu daquela civilização). Embora a cidadania fosse limitada a uma parcela social minoritária, pode-se afirmar que, tanto a democracia quanto a cidadania grega, não deixam de ser conquistas inéditas e avanços significativos para a história ocidental.[2] Na segunda seção, discute-se a evolução e a real consolidação da cidadania na modernidade. Junto com a cidadania moderna nasce os direitos naturais (vida, propriedade, liberdade) do homem liberal burguês garantido pelas consecutivas “Declarações de Direitos” elaboradas a partir das revoluções liberais na Inglaterra (Revolução Gloriosa 1688-89), Estados Unidos (Emancipação política 1776), França (Revolução Francesa).[3] A última seção trata da difícil construção da cidadania no Brasil. Esta seção revisa a história do país elencando razões profundas para a nossa não-cidadania atual: a conquista, o latifúndio, a escravidão, a monocultura de exportação, o analfabetismo, a perpetuação das elites políticas no poder, refletem nos vícios da vida social, política e econômica do país.[4]

As origens da cidadania no período clássico

A palavra cidadania provém do termo latino civitas. No entanto, pode-se encontrar suas origens intelectuais nas religiões da Antiguidade e nas civilizações greco-romanas. Polites, que os romanos traduziram por cives, que é o sócio da polis ou civitas. O legado greco-romano da palavra civitas nos remete às noções de liberdade, igualdade e virtudes republicanas (MOISÉS, 2005). É na polis grega que os conceitos de liberdade e igualdade ganham sentido. No entanto, é importante mencionar que a participação na polis ou na civitas era exclusiva de alguns homens que participavam do funcionamento da cidade-Estado, eram eles os titulares de direitos políticos (COMPARATO, 1993). Eram considerados cidadãos apenas os homens nascidos no solo da cidade, livres e iguais, portadores de dois direitos inquestionáveis: portadores da isonomia (igualdade perante a lei) e da isegoria (o direito de expor e discutir em público opiniões sobre ações que a cidade deveria ou não realizar) (CHAUÍ, 1994, p.371). Ser cidadão, para os gregos, significava antes de tudo usufruir certas vantagens que nenhum outro homem conhecera. Como afirma Minogue: “Os cidadãos tinham riqueza, beleza e inteligência diversas, mas como cidadãos eram iguais” (MINOGUE, 1998, p.19).
Foi, sobretudo, no século V a.C. que Atenas viveu seu momento de apogeu.[5] Nesse século, especificamente, desenvolveram-se as concepções de cidadania e democracia. Em oposição à idéia aristocrática de poder, o cidadão poderia e deveria atuar na vida pública independentemente da origem familiar, classe ou função (ARENDT, 1995, p.41).
Da mesma forma, a racionalidade era atribuída a uma minoria da população, exclusivamente aos homens que tinham o direito de filosofar, além de participar da academia (culto à beleza física) e do poder (direito de comandar politicamente todos os interesses da polis, mediante a elaboração e execução de leis e normas administrativas). Cidadão, segundo o teórico Coulanges, “é todo o homem que segue a religião da cidade, que honra os mesmos deuses da cidade, (...) o que tem o direito de aproximar-se dos altares e, podendo penetrar no recinto sagrado onde se realizam as assembléias, assiste às festas, acompanha as procissões, e participa dos panegíricos, participa dos banquetes sagrados e recebe sua parte das vítimas. Assim esse homem, no dia em que se inscreveu no registro dos cidadãos, jurou praticar o culto dos deuses da cidade e por eles combater” (COULANGES, s/d., p.135). Os escravos e os bárbaros não podiam tomar parte dos ambientes sagrados.
Segundo alguns teóricos, apenas 10% da população eram considerados cidadãos em Atenas. A fim de reduzir as despesas do Estado, o governo restringiu o direito de cidadania: somente os filhos de pai e mãe atenienses seriam considerados cidadãos. As mulheres, os metecos (estrangeiros) e os escravos continuaram desprovidos de quaisquer direitos políticos (AQUINO, 1988, p.200).[6] A mulher era considera o “não ser”: equiparada aos escravos, cuidava dos afazeres “domésticos”, servia como instrumento de procriação e não participava, portanto, das decisões da polis.[7] Aristóteles descreve que mulheres e escravos eram mantidos fora da vista do público, eram os trabalhadores que, “com o seu corpo, cuidavam das necessidades (físicas) da vida” (Política 1254b25). São as mulheres que, com seu corpo, garantem a sobrevivência física da espécie. Mulheres e escravos pertenciam à mesma categoria e eram mantidos fora das vistas alheias - não somente porque eram propriedade de outrem, mas porque a sua vida era “laboriosa”, dedicada a funções corporais (ARENDT, 1995, p.82-83). O filho, de preferência, deveria ser do sexo masculino, sendo candidato em potencial para exercer a cidadania. O escravo servia de mão-de-obra para o sustento e manutenção dos cidadãos.[8]
Para Aristóteles, ser cidadão diz respeito a todo aquele que é capaz de tomar parte tanto no judiciário quanto no poder deliberativo da polis: “Nenhum caráter define melhor o cidadão no sentido estrito do que a participação do exercício dos poderes de juiz e magistrado” (ARISTÓTELES, A Política, III, 1,6, Apud. TOURAINE, 1994, p.40) . O fim último do homem é viver na polis, onde o homem se realiza como cidadão (politai), manifestando o processo de constituição de sua essência, a sua natureza. Ou seja, não apenas viver em sociedade, mas viver na “politicidade”. A verdadeira vida humana deve almejar a organização política, que é uma forma superior e até oposta à simples vida do convívio social da casa (oikia) ou de comunidades mais complexas. A partir da compreensão da natureza do homem, determinados aspectos da vida social adquirem um estatuto eminentemente político, tais como as noções de governo, de dominação, de liberdade, de igualdade, do que é comum, do que é próprio.[9] Aristóteles defendia também a polis como uma “koinonia” de alguma espécie. “Koinonia” compreendida como comunhão, integração dos membros da polis com o propósito de se aperfeiçoarem e atingirem a “autarkeia” (FRIEDRICH, 1970).
Para Aristóteles, a reflexão sobre a política é que ela não se separa da ética, pois, segundo o estagirita, a vida individual está imbricada na vida comunitária. A razão pela qual os indivíduos reúnem-se nas cidades[10] (e formam comunidades políticas) não é apenas a de viver em comum, mas a de viver “bem” ou a boa vida[11]. Para que isso aconteça, é necessário que os cidadãos vivam o bem comum, ou em conjunto ou por intermédio dos seus governantes; se acontecer o contrário (a busca do interesse próprio), está formada a degeneração do Estado.[12]
Por fim, como afirma Corrêa (1999), a cidadania da Grécia Clássica possui um parâmetro muito específico, de difícil aceitação numa concepção moderna de cidadania. Ou seja, o que caracteriza a cidadania antiga é seu aspecto limitador, elitista e excludente, pouco semelhante com o entendimento dos nossos dias.

A cidadania liberal burguesa

Assim como a democracia, a cidadania passou por diferentes e possíveis “invenções” em períodos e espaços determinados da história e da geografia do Ocidente. Grécia e Roma consolidaram por séculos seus sistemas de governos, possibilitando e permitindo a participação de um significativo número de cidadãos. Com o desaparecimento das civilizações clássicas, a cidadania desaparece juntamente e, por um bom tempo, ficará fora de cena no Ocidente. No período medieval, o burgo ocupou o lugar da polis, dando novas dimensões à idéia de liberdade, e o burguês converteu-se no protótipo do cidadão, sendo a cidade o seu habitat natural (MOISÉS, 2005). Da mesma forma, para Comparato (1993, p.87-88), o renascimento da vida política fundada na liberdade entre iguais deu-se apenas a partir do século XI, nas cidades-estados da Península Itálica, e com características muito semelhantes às da cidadania antiga: o grupo dos que detinham direitos políticos era composto de uma minoria burguesa, sob a qual labutava toda uma população de servos e trabalhadores manuais, destituídos de cidadania.
As cidades renascentistas italianas (Gênova, Florença e Veneza) também passaram por interessantes experiências democráticas e de cidadania nos séculos XV e XVI. Essas experiências foram impulsionadas, mais tarde, pelas revoluções liberais, como a Revolução Gloriosa na Inglaterra (1688/89), a Revolução Americana (1776) e a Revolução Francesa (1789), quando o homem moderno passa a ver garantida, nas suas respectivas Constituições, a defesa dos direitos individuais (vida, liberdade e propriedade).[13] Tem-se aí a consolidação da cidadania e do liberalismo, defendida, principalmente, pela teoria do contrato social de John Locke e Rousseau.[14] É certo, porém, que tais direitos também foram restritos a uma pequena parcela da população, e a desigualdade perdurou por muito tempo: na Inglaterra, em 1832, o direito de voto era para apenas 5% da população acima dos vinte anos de idade. O que está em jogo nas constituições liberais e nos sistemas políticos modernos são única e exclusivamente os interesses da classe burguesa e o freamento da participação para o restante da população.[15]
Mais próximo de nós, no século XX, T. A. Marshall foi quem primeiro discutiu o conceito de cidadania e suas dimensões no ensaio clássico “Cidadania e classe social”[16]. Ainda hoje, depois de mais de seis décadas após a sua publicação (em 1949), o ensaio de Marshall continua a ser a referência teórica fundamental para quem começa a refletir sobre a cidadania na sociedade contemporânea; é o que se pode constatar, de resto, através da consulta à mais recente bibliografia dedicada a esse tema (SAES, 2000, p.2).
Os Direitos Civis, dentro da tradição descrita por Marshall, estão ligados aos direitos fundamentais do homem, como o direito à vida, à liberdade, à propriedade, e à igualdade perante a lei. Já os Direitos Políticos se referem à participação do cidadão no governo da sociedade. Seu exercício é limitado a uma reduzida parcela da população e consiste na capacidade de fazer demonstrações políticas, formar e participar de agremiações políticas, organizar partidos, votar e ser votado. Em geral, quando se fala de direitos políticos, é do direito do voto que se está falando. Por fim, aparecem os Direitos Sociais, que garantem a participação no governo da sociedade, e na riqueza coletiva. Eles incluem o direito à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde e à aposentadoria (CARVALHO, 2002, p.10). É a soma desses direitos (civis, políticos e sociais) que garantem a emancipação humana e a justiça social. Certamente Marshall descreveu a evolução da cidadania em seu país de origem, ou seja, a Inglaterra. Foi nesse país que surgiram inicialmente os direitos civis no século XVIII, depois vieram os direitos políticos (XIX) e, por fim, os direitos sociais (XX).[17]

A difícil contrução da cidadania no Brasil

 

Brasil colonial: ausência de direitos e de poder público


Inicialmente, é preciso afirmar que, no Brasil, a construção da cidadania não seguiu a lógica da trajetória inglesa. Houve no Brasil, segundo José Murilo de Carvalho (2002), pelo menos duas diferenças importantes: a primeira refere-se à maior ênfase em um dos direitos, o social, em relação aos outros; a segunda refere-se à alteração na seqüência em que os direitos foram adquiridos: entre nós o social precedeu os outros (p.12).
Uma das razões fundamentais das dificuldades da construção da cidadania está ligada, como nos diz Carvalho, ao “peso do passado”, mais especificamente ao período colonial (1500-1822), quando “os portugueses tinham construído um enorme país dotado de unidade territorial, lingüística, cultural e religiosa. Mas tinham deixado uma população analfabeta, uma sociedade escravocrata, uma economia monocultora e latifundiária, um Estado Absolutista” (p.18). Em suma, foram 322 anos sem poder público, sem Estado, sem nação e cidadania.

A “conquista” da terra brasilis

Já no princípio da história do Brasil, as contradições apareceram. Primeiro, pode-se dizer que o Brasil não fora “descoberto”, conforme comumente menciona-se, mas, sim, “conquistado” pelos europeus (portugueses). O encontro dessas duas culturas (a européia versus a dos povos nativos das Américas) foi o confronto trágico de duas forças em que uma pereceu necessariamente, um encontro pouco amigável entre duas civilizações: uma considerada “desenvolvida”, por conhecer certas tecnologias (a irrigação, o ferro e o cavalo) versus a nativa (“desconhecida” e, por isso mesmo, considerada “bárbara”). Os nativos viviam ensimesmados com a natureza, com uma religião diferente do cristianismo europeu. Suas crenças eram mescladas com os elementos da natureza: a lua, o sol, as estrelas. Até mesmo a palavra “índio” foi o nome dado pelos europeus ao se confrontarem com o "outro" e quem deu o nome, no caso, acabou se apossando, ficando dono.[18]
Bem antes de o europeu chegar a estas terras, o índio tinha suas normas morais e seus ritos religiosos. Ele respeitava a si próprio e aos outros, à mãe terra, às águas e à natureza como um todo. Os espanhóis e, mais tarde, os portugueses chegaram, impuseram sua força e conquistaram com a violência (armas) e a ideologia (religião): em uma das mãos, com a cruz do Cristo europeu, simbolizando o poder da Igreja; na outra, a espada para a conquista. O resultado foi o extermínio, pela guerra, escravidão e doença (sífilis, varíola, gripe), de milhões de índios.[19] Grande parte da população indígena foi dizimada rapidamente pelo homem “civilizado”. Calcula-se que havia no Brasil, na época da “descoberta”, cerca de 4 milhões de índios. Em 1823, restavam menos de 1 milhão (CARVALHO, 2002, p.20). Atualmente a população indígena, depois de ter reduzido drasticamente sua população, tem crescido de forma significativa nos últimos anos. Segundo o censo de 2000, do IBGE, 734 mil pessoas (0,4% dos brasileiros) se auto-identificaram como indígenas, um crescimento absoluto de 440 mil indivíduos em relação ao censo de 1991, quando apenas 294 mil pessoas (0,2% dos brasileiros) se diziam indígenas.[20]
Outra característica do período colonial está ligada à conotação comercial. O Brasil serviu à produção de monocultura para resolver o problema da demanda européia, fornecendo a cana-de-açúcar. Isto exigia largas extensões de terras e mão-de-obra escrava dos negros africanos. No Brasil se configurou o latifúndio monocultor e exportador de base escravista. Outros ciclos de exploração se sucederam no Brasil como o da mineração (séc. XVII), do gado, da borracha, do café..., servindo assim, por muito tempo, apenas como fornecedor de matérias-primas à metrópole (Portugal).

A escravidão

No período colonial, a cidadania foi negada à quase totalidade da população; porém, os mais afetados foram os escravos negros provenientes do continente africano. Para Carvalho (2002), “o fator mais negativo para a cidadania foi a escravidão” (p.19). Foi por volta de 1550 que os escravos começaram a ser importados. Essa prática continuou até 1850, 28 anos após a independência. Calcula-se que até 1822 tenham sido introduzidos na colônia cerca de 3 milhões de escravos. Na época da Independência, numa população de cerca de 5 milhões, incluindo 800 mil índios, havia mais de 1 milhão de escravos (Idem, p.19). É importante destacar que em todas as classes sociais desse período havia escravos.
Depois de mais de 300 anos, o Brasil chegou à abolição da escravidão, mais por pressão externa do que por um amadurecimento da consciência social da população. Neste sentido, a abolição da escravidão no Brasil, no dia 13 de maio de 1888, foi um grande engodo, uma farsa. O Brasil foi o último país de tradição cristã ocidental a abolir a escravidão, sendo que essa apenas ocorreu, não pelo amadurecimento da consciência do povo brasileiro, mas da própria elite pressionada pelos interesses econômicos internacionais. A Inglaterra, essencialmente por interesses comerciais, exigiu, em 1850, o término do comércio negreiro, instituído com a Lei Eusébio de Queiroz, que se constituiu num passo importante para a abolição - que só viria a acontecer 38 anos depois.
Por isso, a data mais significativa para celebrar a história do povo negro, sua cultura, seu anseio por liberdade e sua verdadeira participação na sociedade, centra-se no dia 20 de Novembro, data da morte de Zumbi, martirizado em 1695 sob as forças expedicionárias do bandeirante Domingos Jorge Velho. Zumbi, que significa a força do espírito presente, foi o principal líder da resistência da comunidade de Palmares. Esse quilombo foi a mais importante organização de resistência do povo negro no país, sendo, dentre vários, aquele que ocupou a maior extensão de terra e o maior tempo de existência (1600-1695). Por volta de 1654, o quilombo dos Palmares (região acidentada e de difícil acesso no interior de Alagoas), era composto por muitas aldeias onde os negros viviam em liberdade. Eis o nome de algumas comunidades: Macaco, na Serra da Barriga, com 8 mil habitantes; Amaro, no noroeste de Serinhaém, com 5 mil habitantes; Sucupira, à 80 km de Macaco; Zumbi, a noroeste de Porto Calvo, e o Senga, à 20 km de Macaco. A população total de Palmares, na época, atingiu mais de 20 mil habitantes, o que representava 15% da população do Brasil.
Pela utilização da mão-de-obra escrava nas colônias, foi possível a formação e o desenvolvimento dos Estados Nacionais na Europa e a construção das cidades. Além disso, realizou-se a Revolução Industrial na Inglaterra, devido à importação de negros africanos, que eram mestres ferreiros, marceneiros e carpinteiros, o que propiciou o acúmulo de riqueza gerador do capitalismo. O sistema capitalista soube tirar proveito dessa situação, na conquista, na pirataria, no saque e na exploração. Huberman (1986, p.160) descreve que a acumulação de riquezas deve-se “ao trabalho e ao sofrimento do negro, como se suas mãos tivessem construído as docas e fabricado as máquinas a vapor”.[21]
O escravo africano, além de sofrer a dominação econômica e religiosa, foi excluído, igualmente, do pensamento filosófico europeu. Foi considerado povo a-histórico, irracional, bárbaro, fechado em si mesmo, não tendo condições de ascender ao “espírito universal”. Hegel, no início do século XIX, escreveu a obra Filosofia da História Universal, onde percebe-se a ideologia racista, superficial e eurocêntrica do filósofo alemão em relação à África. Páginas preconceituosas, que maculam a história da filosofia mundial. Sobre o continente africano, Hegel comenta:

A África é em geral uma terra fechada, e conserva este seu caráter fundamental... A África ... não tem propriedade histórica. Por isso abandonamos a África para não mencioná-la mais. Não é uma parte do mundo histórico; não representa um movimento nem um desenvolvimento histórico ... o que entendemos propriamente por África é algo isolado e sem história, sumindo ainda por completo no espírito natural; e que só pode ser mencionado aqui no umbral da História Universal.

Sobre o homem africano, Hegel arremata: “Entre os negros é realmente característico o fato de que sua consciência não chegou ainda à intuição de nenhuma objetividade, como, por exemplo, Deus, a lei, na qual o homem está em relação com sua vontade e tem a intuição de sua essência... é um homem em estado bruto”. Hegel, como europeu, argumentou que o Estado Germânico-Prussiano (Alemanha, Dinamarca e Prússia) é a síntese da “História e do Espírito Universal” cabendo aos outros povos, latinos e africanos, a exclusão desse sistema (HEGEL, 1975).
A situação do negro, hoje, continua sendo de marginalização e exclusão. Por isso, há a necessidade de medidas não apenas afirmativas, mas, também, transformativas na emancipação da etnia negra no país.[22] Há muito que fazer para que a verdadeira abolição da escravidão aconteça, principalmente na questão da educação, acesso ao trabalho e à renda. Dados demonstram que o analfabetismo ainda é maior entre os negros: segundo dados do IBGE, em 1999, a taxa de analfabetismo das pessoas com 15 anos de idade ou mais era de 8,3% para brancos e de 21% para pretos e a média de anos de estudo das pessoas com 10 anos de idade ou mais é de quase 6 anos para os brancos e cerca de 3 anos e meio para os negros.
Na questão do acesso ao trabalho, as diferenças são expressivas: 6% de brancos com 10 anos de idade ou mais aparecem nas estatísticas da categoria de trabalhador doméstico, enquanto os pardos chegam a 8,4% e os pretos a 14,6%. Por outro lado, na categoria empregadores encontram-se 5,7% dos brancos, 2,1% dos pardos e apenas 1,1% dos pretos. Quanto ao rendimento mensal familiar per capita e à distribuição das famílias por classes, os dados indicam que 20% das famílias cujo chefe é de cor branca tinham rendimento de até 1 salário mínimo contra 28,6% dos chefes das famílias pretas e 27,7% das pardas (IBGE, 1999). Segundo ainda os dados do IBGE, em 1999, a população branca que trabalhava tinha rendimento médio de cinco salários mínimos. Pretos e pardos alcançavam menos que a metade disso: dois salários. Essas informações confirmam a existência e a manutenção de uma significativa desigualdade de renda entre brancos, pretos e pardos na sociedade brasileira.[23]

O analfabetismo

Outra marca registrada do período colonial foi o analfabetismo. A maioria da população, segundo Carvalho (2002) era analfabeta: em 1872, meio século após a Independência, apenas 16% da população era alfabetizada.
Apenas a elite brasileira da época era portadora do conhecimento, enquanto o analfabetismo predominava nas classes mais pobres: “quase toda a elite possuía estudos superiores, o que acontecia com pouca gente fora dela: a elite era uma ilha de letrados num mar de analfabetos” (CARVALHO, 2000A, p.55). Entre os letrados, principalmente, era comum a formação jurídica feita em Portugal: primeiro em Coimbra e, depois, em Lisboa. Além disso, Portugal proibiu o Brasil de abrir universidades em seu território; em contrapartida, a Espanha permitiu, desde o início, a criação de universidades em suas colônias (p.16).
Tal contraste pode ser percebido, entre Espanha e Portugal, no que se refere ao número de matrículas: “Calculou-se que até o final do período colonial umas 150.000 pessoas tinham-se formado nas universidades da América Espanhola. Só a Universidade do México formou 39.367 estudantes até a independência. Em vivo contraste, apenas 1.242 estudantes brasileiros matricularam-se em Coimbra entre 1772 e 1872”, quadro esse que será revertido apenas após a chegada da família real ao Brasil, em 1808 (p.62). No final do século XVIII, somente 16,85% da população brasileira entre 6 e 15 anos freqüentava a escola (p.70). É notável, de imediato, a formação de bacharéis em Direito desde o início de nossa história. Somente em 1879 houve uma reforma que o dividiu em Ciências Jurídicas e Ciências Sociais: “A reforma de 1879 dividiu o curso em Ciências Jurídicas e Ciências Sociais, as primeiras para formar magistrados e advogados, as segundas diplomatas, administradores e políticos” (p.76).
É importante mencionar ainda que, somente os advogados e médicos receberam o título de doutores, “que podia referir-se tanto a médico como a doutores em direito” (p.90). Os cargos políticos ocupados na esfera estatal pertenciam à elite, principalmente aos proprietários rurais. Essa mesma elite circulava pelo país e por postos no Judiciário, Legislativo e Executivo, buscando assegurar vantagens pessoais. Como conclui Carvalho (2002, p.129), a burocracia foi a vocação da elite imperial brasileira.

 

O Insolidarismo


No período colonial, a marca principal da população brasileira foi o individualismo e o isolamento. Francisco José de Oliveira Vianna foi um dos primeiros teóricos a perceber tais características. Na obra Instituições políticas brasileiras (1955),[24] Vianna designou o conceito de insolidarismo como o traço mais característico dos indivíduos e dos grupos na sociedade brasileira, razão pela qual defendia o papel coativo e educador do Estado na formação do que ele chamava de um comportamento culturológico, capaz de sobrepor-se ao espírito insolidarista.[25] Contudo, é na segunda parte dessa obra, intitulada Morfologia do Estado, que Vianna discutirá o significado sociológico do anti-urbanismo colonial (gênese do espírito insolidarista).
Para o autor, o espírito insolidarista tem sua origem nos primórdios da “colonização”.[26] Dessa maneira, criou-se no Brasil o homo colonialis, tendo como características fortes traços de individualismo e desconfiança: um amante da solidão, do deserto, rústico e anti-urbano. O bandeirante paulista é citado como um exemplo clássico: “Os paulistas são de ânimos ferozes, porque a criação que quase todos eles tem lhes fez um hábito de ferocidade; são de gênio áspero e desconfiado, pronto a internar-se pelos matos” (p.145-146).
Da mesma forma, na questão do trabalho, o homem brasileiro, comparado com outros homens do mundo, caracterizou-se pelo particularismo e individualismo: “O trabalho agrícola, em nosso país – ao contrário do que aconteceu no mundo europeu – sempre foi essencialmente particularista e individualista: centrifugava o homem e o impelia para o isolamento e para o sertão” (p.151). Não houve a formação da solidariedade social, hábitos de cooperação e de colaboração, nem mesmo espírito público:

É claro que os laços de solidariedade social, os hábitos de cooperação e colaboração destas famílias na obra do bem público local não podiam formar-se. Com mais razão, não precisavam elas associar-se para a vida pública, para organizarem – como as ‘comunidades agrárias’ da Espanha, por exemplo – os órgãos da administração da ‘região’ do ‘município’, da ‘freguesia’, do ‘distrito’. Em conseqüência: o espírito público não podia encontrar leira, nem húmus para germinar e florescer como tradição e cultura (p.154).

Segundo Vianna, o que houve, na verdade, foi uma solidariedade social negativa:

No ponto de vista culturalístico, o nosso povo é, por isto, sob o aspecto de solidariedade social, absolutamente negativo. Os pequenos traços de solidarismo local, que nele encontramos, são tenuíssimos, sem nenhuma significação geral: práticas de ‘mutirão’. ‘rodeio’ – e quase nada mais. Isto no que toca com as relações sociais privadas. Politicamente – isto é, no que toca com as relações dos moradores com os poderes públicos locais – nada se registra também de assinalável (p.153).

Em relação a outros povos latino-americanos, o brasileiro é, essencialmente, individualista, não necessita da ajuda comunitária e vive de forma isolada:

O brasileiro é fundamentalmente individualista, mais mesmo, muito mais do que os outros povos latino-americanos. Estes ainda tiveram, no início, uma certa educação comunitária de trabalho e de economia. É o que nos deixam ver as formas do coletivismo agrário praticadas durante o seu período colonial e que, ainda hoje, de certo modo, subsistem ali – como se observa nos ejidos do México ou nos ayllus bolivianos. Nós não. No Brasil, só o indivíduo vale e, o que é pior, vale sem precisar da sociedade – da comunidade [...]. Estude-se a história da nossa formação social e econômica e ver-se-á como tudo concorre para dispersar o homem, isolar o homem, desenvolver, no homem, o indivíduo. O homem socializado, o homem solidarista, o homem dependente do grupo ou colaborando com o grupo não teve aqui clima para surgir, nem temperatura para desenvolver-se (p.155).

Também na formação social e econômica do brasileiro é o extremado individualismo familiar que prevalece. Para Vianna, esse individualismo e ausência de espírito público tem raiz cultural:

É claro que de tudo isto outra cousa não se poderia esperar senão este traço cultural nosso, caracterizado pela despreocupação do interesse coletivo, pela ausência do espírito público, de espírito do bem comum, de sentimento de solidariedade comunal e coletiva e pela carência de instituições corporativas em prol do interesse do ‘lugar’, da ‘vila’, da ‘cidade’ (p.155).

Mais adiante, Vianna assinala pontualmente que os brasileiros, contrariamente aos ingleses, possuem um baixo interesse pela solidariedade e pelo coletivo:

Nós, os brasileiros – povo sem espírito de colaboração e de equipe –, observando esta extrema solidariedade, esta extrema harmonia, esta extrema compreensão do interesse coletivo e nacional, este maravilhoso espírito de colaboração e de ação em conjunto – em que cada cidadão inglês agia como se fora peça de uma máquina única e enorme, funcionando com regularidade, em pleno regime liberal, de livre e espontânea iniciativa – nós, brasileiros, contemplando tudo isto, éramos levados a exclamar com orgulho, como se fôramos nós o autor de toda essa maravilha: Isto, sim, é que é um povo (p.205).

O que existe no Brasil é apenas uma solidariedade parental, isto é, desde que se mantenham os interesses fechados entre as famílias dominantes: “Esta solidariedade inter-familiar e clânica é, assim, peculiar e exclusiva à classe senhorial” (p.272). Vianna assinala que a solidariedade só existiu na vida pública (do clã feudal e do clã parental), não tendo acontecido na ordem social (religiosa e econômica), sendo apenas de ordem política: “Esta solidarização, este entendimento, esta associação, este sincretismo, que se processa entre eles, era puramente político – porque tinha fins exclusivamente eleitorais” (p.298).
A falta de educação para a cooperação é outro problema elencado por Vianna:

O grande domínio brasileiro, a ‘fazenda’ ou o ‘engenho’ – ao contrário do grande domínio feudal europeu – nunca pôde constituir-se, justamente por isto, numa escola de educação do povo-massa para a cooperação – no sentido de realizar qualquer interesse coletivo da comunidade moradora nele: o labor escravo dispensou ou impediu esta articulação entre o senhor do domínio do povo massa livre nele residente (p.357).

Segundo o autor, o povo nunca participou, sequer transitoriamente, da administração do domínio. Essa administração sempre foi feita ditatorialmente, em estilo antidemocrático, pelo senhor de engenho.
Desse modo, fica evidente a carência de motivações coletivas e de espírito público no Brasil: “E a razão disto está em que não havia – quando instituímos o regime democrático no nosso país – nada que se houvesse constituído em tradição de interesse coletivo do município, da província ou da nação” (p.371). O processo de imitação fora uma constante: “Sempre imitando os modelos em voga, ou do outro lado do Atlântico, ou do outro lado do continente” (p.374). Existia, então, solidariedade? Vianna cita os Estados Unidos e a Inglaterra como exemplos de países onde existiu o espírito de solidariedade:

Na Inglaterra e nos Estados Unidos, por exemplo – onde o espírito de solidariedade é muito desenvolvido e o gosto da associação é muito vivo – este interesse público, estas necessidades coletivas, estas aspirações do bem comum da Nação são expressas por miríades de órgãos, que representam a tradição da solidariedade social ou profissional desses povos: sindicatos, ligas, associações, universidades, sociedades, cooperativas, comitês, corporações, federações, etc (p.393).

Por fim, é importante mencionar que Oliveira Vianna viveu o período histórico-político em que o Estado centralizador, unido à prática populista de Vargas, era vigente. Vianna fora um dos principais teóricos que defendia esta visão elitista de que caberia à pequena parcela da elite, utilizando as palavras de Schwartzman (2001), modernizada pela ciência e pela educação, e através do controle do Estado, ordenar a sociedade, cuidar do bem-estar dos brasileiros e transformar o país na grande nação que deveria ser o seu destino.

Independência: a formação de um Estado sem nação

É importante destacar que a construção da cidadania está ligada essencialmente à construção de uma nação e de um Estado. Isto é, tem a ver com a formação de uma identidade entre as pessoas (tradição, religião, língua, costumes), com a construção de uma nacionalidade ou, sob o aspecto jurídico na formação de um estado. Assim, o sentimento de pertencer a uma nação é um indicativo importante para a construção de um Estado. Sentir-se parte de uma nação e de um Estado é condição fundamental para a construção da cidadania: “Isto quer dizer que a construção da cidadania tem a ver com a relação das pessoas com o Estado e com a nação. As pessoas se tornavam cidadãs à medida que passavam a se sentir parte de uma nação e de um Estado” (CARVALHO, 2002, p.12).
No Brasil, como veremos, o Estado precedeu a formação da nação. A formação do Estado deu-se exclusivamente pela vontade da elite portuguesa que aceitou e negociou com a Inglaterra e com a elite brasileira a “independência” do país: “Graças à intermediação da Inglaterra, Portugal aceitou a independência do Brasil mediante o pagamento de uma indenização de 2 milhões de libras esterlinas” (p.27).
A relação de dependência da colônia com Portugal não permitiu formar uma identidade própria, nem edificar uma nação propriamente dita. A primeira manifestação de nossa nacionalidade ocorreu, segundo Carvalho (2000A), apenas em 1865, na Guerra do Paraguai. A luta contra o inimigo externo, a formação de uma liderança política (chefe inspirador), o culto ao símbolo nacional (a Bandeira) e a união dos voluntários de todo o Brasil possibilitaram o advento de um sentimento comum: o orgulho e a criação da primeira idéia de identidade nacional: “não vejo consciência nacional no Brasil antes da Guerra do Paraguai” (p.11). Os principais fatos políticos do Brasil ocorreram para atender interesses individuais, ou de pequenos grupos hegemônicos. Assim foi na Independência, como nos diz Costa (1981): “as coisas vão simplesmente acontecendo: no jogo das circunstâncias e das vontades individuais, no entrechoque de interesses pessoais, de paixões mesquinhas e de sonhos de liberdade, faz-se a independência do país” (p.65). É importante afirmar que a notícia da emancipação política do Brasil só chegou a lugares mais distantes após três meses do fato ocorrido.
O poder político concentrou-se nas mãos dos proprietários. A vinda da família real para o Brasil, em 1808, não passou de uma manobra (abertura dos portos) para beneficiar os ingleses e franceses. Alguns anos mais tarde, as condições se mostravam favoráveis para a independência do Brasil, o que veio a ocorrer em 7 de setembro de 1822; porém, à revelia do povo.[27]
Em sua obra A construção da ordem (1996), José Murilo de Carvalho trata, igualmente, entre outras questões, do processo de colonização, do Brasil Imperial e da elite política. O autor apresenta, logo na introdução, a diferença entre a evolução das colônias espanhola e portuguesa na América. Para ele, a diferença básica é que os territórios espanhóis fragmentaram-se politicamente, tornando-se Estados independentes, ao passo que os portugueses concentraram-se. Enquanto os espanhóis passaram por períodos anárquicos (instabilidade e rebeliões), os portugueses não recorreram a essas formas violentas. O domínio político português sobre a colônia foi intenso, sendo que os capitães-gerais eram nomeados diretamente pela Coroa e a ela respondiam (p.12).
Deste modo, o Brasil herdou, na construção de seu Estado, a burocratização do Estado moderno, conforme fora descrito por Max Weber: “A ordem legal, a burocracia, a jurisdição compulsória sobre um território e a monopolização do uso legítimo da força são características essenciais do Estado moderno”. O Estado moderno utilizou quatro mecanismos: a burocratização, o monopólio da força, a criação de legitimidade e a homogeneização da população dos súditos (WEBER, apud CARVALHO, 2000A, p.23).
No período imperial, existiam dois partidos políticos com ideologias semelhantes: o Conservador e o Liberal. O primeiro defendia os interesses da burguesia reacionária proveniente dessa mesma classe, dos donos das terras e senhores de escravos (domínio agrário); enquanto o segundo defendia os interesses da burguesia progressista, representada pelos comerciantes (domínio urbano) (p.182). Diz Carvalho que, até 1837, não se pode falar em partido político no Brasil, existindo apenas a maçonaria.
No período colonial, assim como na República Velha (1890-1930), a grande maioria da população ficou excluída dos direitos civis e políticos, com um reduzido sentimento de nacionalidade. Isso não significa que não houve resistência por parte de alguns grupos oposicionistas (abolicionistas, separatistas, monarquistas, anti-republicanos, luta pela terra...). Foram muitas as formas de luta, no entanto, todos os movimentos foram duramente reprimidos e aniquilados pelo poder central: Balaiada no Maranhão e a cabanagem no Pará (a mais violenta, que vitimou 30 mil pessoas), a Farroupilha no Rio Grande do Sul, além de Canudos na Bahia, o Contestado em Santa Catarina e a Revolta da Vacina no Rio de Janeiro, são alguns exemplos de revoltas localizadas.

Uma República sem povo

Assim como a emancipação política (independência), a Proclamação da República brasileira apresentou características sui generis ao ser instituída, haja vista o seu caráter golpista e elitista. O povo, por sua vez, não só não participou como foi tomado de surpresa com a proclamação do novo regime. A frase de Aristides Lobo é bastante elucidativa, neste sentido: “O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava. Muitos acreditavam sinceramente estar vendo uma parada militar” (LOBO, apud CARONE, 1969, p.289). Sobre o caráter golpista da Proclamação da República, assim também se expressou Murilo de Carvalho (2002): “Além disso, o ato da proclamação em si foi feito de surpresa e comandado pelos militares que tinham entrado em contato com os conspiradores civis poucos dias antes da data marcada para o início do movimento” (p.80)
O processo eleitoral (participação política) da população durante os períodos imperial e republicano foi insignificante. De 1822 até 1881, votavam apenas 13% da população livre. Em 1881, privou-se o analfabeto de votar. De 1881 até 1930 - fim da Primeira República -, os votantes não passaram de 5,6% da população. Foram cinqüenta anos de governo, imperial e republicano, sem povo.[28]
Assim, até o final da República Velha (1930), a participação política popular foi restrita. Não havia propriamente um povo politicamente organizado, nem mesmo um sentimento nacional consolidado. Os grandes acontecimentos na arena política eram protagonizados pela elite, cabendo ao povo o papel de mero coadjuvante, assistindo a tudo sem entender muito bem o que se passava.[29] 

Os vícios da cultura política

Outro aspecto da vida política brasileira que marcou não apenas o período colonial e republicano, mas, de certa forma, nossa história política atual, está ligado aos “males” ou “vícios”, como o patrimonialismo, o coronelismo, o clientelismo, o populismo e o personalismo das nossas instituições e lideranças políticas.[30] Por exemplo, segundo DaMatta (2000), o populismo está vivo, não apenas no Brasil, assim como em toda a América Latina. As lideranças políticas carregam consigo, além do personalismo, uma boa dose do elemento messiânico,[31] que tem suas longínquas raízes históricas no sebastianismo português. Vive-se ainda esperando que algum “herói sagrado”, ou um “salvador da pátria” desça do Olimpo e resolva os problemas da população. Como bem afirma Renato Janine Ribeiro (2000, p.66), as pessoas carregam a “expectativa messiânica no surgimento de algum pai da pátria que as livrará do desamparo”. É preciso parar de esperar por um milagre sobrenatural: “a questão brasileira é a necessidade da laicização” (p.80). DaMatta, igualmente, trata da esperança messiânica da sociedade brasileira ao afirmar que “espera-se um salvador da pátria” (p.104).[32]
 Depende-se sempre de um líder: “Já que somos incapazes de construir nossa grandeza, quem sabe se um novo Dom Sebastião não o pode fazer por nós” (CARVALHO, 2000A, p.24). Este autor insiste na herança lusitana, que achou terreno fértil por estas paragens para crescer e proliferar: o exemplo mais evidente foi, e continua sendo, a promiscuidade entre o público e o privado; assim, corrupção, clientelismo e patrimonialismo parecem se perpetuar na terra brasilis.[33]
A análise de Caio Prado Júnior evidencia, da mesma forma, alguns vícios da política brasileira, como o clientelismo e a dependência da metrópole.[34]
No período colonial, cerca de 60% da população ainda vivia no litoral, mas, aos poucos, houve uma migração para o interior (ciclo da mineração); esta, porém, com a decadência desse modelo econômico, volta-se para o litoral novamente. A economia, no período colonial, era baseada na monocultura junto com o trabalho escravo. A colônia apenas devia fornecer matéria-prima à metrópole, deixando a maioria da população brasileira com os parcos excedentes. Quanto à organização social do Brasil, era constituída de escravos (totalmente excluídos) e mulatos (com possibilidade de ascender socialmente através da Igreja). Caio Prado Júnior buscou explicitar, igualmente, a base material do Brasil, evidenciando os pecados capitais do país: latifúndio, monocultura, afã fiscal da metrópole, trabalho braçal/desqualificação e escravidão.
Na Evolução política do Brasil (1993), Prado Júnior tratou da colônia e do processo de ocupação da terra através das capitanias: para ele, “um ensaio de feudalismo que não deu certo”. No Império, estimulou-se a agricultura e a pecuária, mas acabou prevalecendo o clientelismo político através da doação de sesmarias. O clientelismo não foi uma prática recorrente apenas do Brasil Colonial. Encontramos tal vício em diferentes momentos do cenário político, evidenciado, inclusive nas últimas eleições gerais. Esse fenômeno é mais amplo e atravessa toda a história política do país. É um tipo de relação que envolve a concessão de benefícios públicos entre atores políticos. O clientelismo aumentou com o fim do coronelismo, quando a relação passa a ser diretamente entre políticos e setores da população, sem a intermediação do coronel, que perdeu sua capacidade de controlar os votos da população. Na vigência do coronelismo, o controle do cargo público era visto como importante instrumento de dominação e não como simples empreguismo. O emprego público irá adquirir importância como fonte de renda nas relações clientelistas (CARVALHO, 1997).
A questão do coronelismo, outra característica da política brasileira, foi tratada por Victor Nunes Leal, na obra Coronelismo, enxada e voto, publicada em 1948. Na concepção de Leal, o coronelismo é visto como um sistema político, uma complexa rede de relações que vai desde o coronel até o Presidente da República, envolvendo compromissos recíprocos. Leal se expressa da seguinte forma:

o que procurei examinar foi, sobretudo, o sistema. O coronel entrou na análise por ser parte do sistema, mas o que mais me preocupava era o sistema, a estrutura e as maneiras pelas quais as relações de poder se desenvolviam na Primeira República, a partir do município (LEAL, apud CARVALHO, 1997).

O autor tratou da relação entre o poder local e o poder nacional, na qual o coronelismo estava inserido. Para ele, o coronelismo surge dentro de um contexto histórico específico, incrustado na conjuntura política e econômica do Brasil no período da República Velha (1889-1930). No âmbito político, cria-se o federalismo, que fora implantado em substituição ao centralismo imperial. A partir do federalismo, criou-se um novo ator político com amplos poderes, o Presidente de Estado. No âmbito econômico, segundo Leal, vivia-se a decadência dos fazendeiros, que também é comentada por Carvalho:

esta decadência acarretava enfraquecimento do poder político dos coronéis em face de seus dependentes e rivais. A manutenção desse poder passava, então, a exigir a presença do Estado, que expandia sua influência na proporção em que diminuía a dos donos de terra. O coronelismo era fruto de alteração na relação de forças entre os proprietários rurais e o governo e significava o fortalecimento do poder do Estado antes que o predomínio do coronel.[35]

Fica explícito, a partir das considerações de Leal, que o coronelismo foi um sistema político nacional baseado na “troca de favores” entre o governo central e os detentores do poder local. As relações entre o poder local (coronéis) e o governo podem ser descritas como um caminho de duas vias, ou seja, um necessitava do outro para sobreviver:

O governo estadual garantia, para baixo, o poder do coronel sobre seus dependentes e seus rivais, sobretudo cedendo-lhe o controle dos cargos públicos, desde o delegado de polícia até a professora primária. O coronel hipoteca seu apoio ao governo, sobretudo na forma de votos. Para cima, os governadores dão seu apoio ao presidente da República em troca do reconhecimento deste seu domínio no Estado. O coronelismo é a fase de processo mais longo de relacionamento entre os fazendeiros e o governo (LEAL, apud CARVALHO, 1997).

Leal (1975) seguiu a definição de Basílio de Magalhães para explicar a origem do conceito de coronelismo no Brasil:

o tratamento de um ‘coronel’ começou desde logo a ser dado pelos sertanejos a todo e qualquer chefe político, a todo e qualquer potentado, até hoje recebem popularmente o tratamento de ‘coronéis’ os que têm em mãos o bastão de comando da política edilícia ou os chefes de partidos de maior influência na comuna, isto é, os mandões dos corrilhos de campanário (p.20-21).

Leal acredita que o mandonismo, o filhotismo, o falseamento do voto e a desorganização dos serviços públicos locais sejam características próprias do coronelismo. Junto ao coronel está ligado o voto de cabresto e a capangagem (p.23).
Os trabalhadores rurais, desprovidos de qualquer estrutura que lhes possibilitasse mudança de vida, eram dependentes do coronel: “completamente analfabeto, ou quase, sem assistência médica, não lendo jornais, nem revistas, nas quais se limita a ver as figuras, o trabalhador rural, a não ser em casos esporádicos, tem o patrão na conta de benfeitor. E é dele, na verdade, que recebe os únicos favores que sua obscura existência conhece” (p.25). A troca de favores era a essência do compromisso coronelista, que consistia em apoiar os candidatos do oficialismo nas eleições estaduais e federais: “enquanto que, da parte da situação estadual, vinha carta branca ao chefe local governista (de preferência o líder da facção local majoritária) em todos os assuntos relativos ao município, inclusive na nomeação de funcionários estaduais do lugar” (p.50).
Ao concluir, percebe-se que, muitos outros vícios permanecem na vida política brasileira. É necessário, além da participação dos setores organizados da sociedade civil e do olhar crítico e imparcial da mídia, outras formas de controle e responsabilização dos atos administrativos das pessoas que ocupam cargos públicos. Trata-se aqui de inserir o conceito de accountability, “que quer dizer autoridades politicamente responsáveis, autoridades que podem ser responsabilizadas pelos seus atos, que devem prestar contas dos seus atos”. O accountability (controle democrático) pode ser vertical (relação governantes e governados) e horizontal: poderes externos podem punir o governo – separação de poderes (autoridades estatais que controlam o próprio poder: que pode empreender ações que vão desde o controle rotineiro até sanções legais ou inclusive impeachment, conforme o caso).[36]

Década de 1930: surgem os direitos sociais

A partir dos anos 20 inicia, paulatinamente, uma nova era na história política do Brasil. Os tempos agora são outros, influências internas, como o processo crescente de urbanização, industrialização, aumento do operariado, criação do Partido Comunista e a Semana de Arte Moderna, bem como influências externas, a crise da Bolsa de Valores de Nova Iorque, acabam modificando as relações econômicas e políticas no Brasil. Assim, na década de 1930 o Brasil vê emergir gradativamente os direitos sociais: “A partir desta data, houve aceleração das mudanças sociais e políticas, a história começou a andar mais rápido” (p.87), principalmente com a criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e a Consolidação das Leis do Trabalho em 1943.[37] Fica evidente que, no Brasil, os direitos sociais não foram conquistados, mas, sim, conseqüência de concessões de governos centralizadores e autoritários. Os sindicatos foram atrelados ao Estado de aspiração fascista. Em termos políticos tivemos retrocesso, pois em 1937 Vargas instaura uma ditadura apoiado pelo aval dos militares instituindo o Estado Novo. O período do Estado Novo termina em 1945. Logo após esse período, o país passou pela primeira experiência democrática (1945 até 1964), tendo como principal característica política o populismo e o nacionalismo.

Da ditadura militar (retrocesso dos direitos) à abertura democrática e a Constituição cidadã (1964-1988)

Depois da breve experiência democrática dos anos anteriores, o Brasil entrou, do ponto de vista dos direitos civis e políticos, nos anos mais sombrios da sua história. Houve perseguição, cassação dos direitos políticos, tortura e assassinatos das principais lideranças políticas, sociais e religiosas. Os Atos Institucionais (AIs) deram a tônica do governo. O AI 1, de 1964, cassou os direitos políticos. O AI 2, de 1965, aboliu a eleição direta para a Presidência da República, dissolveu os partidos políticos criados a partir de 1945 e estabeleceu um sistema de dois partidos. Já o AI 5, de 1968, foi considerado o mais radical de todos, o que mais fundo atingiu direitos políticos e civis. O Congresso foi fechado, passando o presidente, general Costa e Silva, a governar ditatorialmente. Foi suspenso o habeas corpus para crimes contra a segurança nacional (p.162), houve cassações de mandatos, suspensão de direitos políticos de deputados e vereadores, além da demissão sumária de funcionários públicos, censura à imprensa e a instituição da pena de morte por fuzilamento.
No que se refere aos direitos sociais, percebe-se que houve uma sensível melhora na época dos militares. Foram criados o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (Funrural), Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), Banco Nacional de Habitação (BNH), e em 1974 o Ministério da Previdência e Assistência Social (p.172).
Aos poucos o período da ditadura militar dá sinais de esgotamento e os ares de novos tempos começam a soprar no cenário político do Brasil. Depois da pressão política da oposição, da opinião pública, de intelectuais, artistas e da população em geral, os militares deixam o poder, de forma negociada, no ano de 1985. Novos partidos foram criados e a nova Constituição Nacional foi promulgada em 1988. Essa Constituição, apesar das defesas de alguns setores conservadores da sociedade (como o “Centrão” – deputados que defendiam as grandes propriedades rurais), foi considerada a Constituição mais liberal de todas. Ulisses Guimarães, na época a designou como a “Constituição Cidadã”.
No entanto, apesar dos avanços políticos, os direitos civis e sociais são deficientes desde 1985. Há precariedade na questão da segurança e no acesso à Justiça, além das altas taxas de homicídios: “A taxa nacional de homicídios por 100 mil habitantes passou de 13 em 1980 para 23 em 1995, quando é de 8,2 nos Estados Unidos” (p.212). O Judiciário não cumpre seu papel (acesso limitado à Justiça) – além da morosidade – e há um número reduzido de defensores públicos.
Por fim, deu-se no Brasil, diferentemente de outros países, a lógica inversa: primeiro os direitos sociais, depois os políticos e civis. Como bem argumenta Carvalho: “Aqui primeiro vieram os direitos sociais, implantados em período de supressão dos direitos políticos e de redução dos direitos civis por um ditador que se tornou popular. Depois vieram os direitos políticos, de maneira também bizarra. A maior expansão do direito do voto deu-se em outro período ditatorial, em que os órgãos de representação política foram transformados em peça decorativa do regime”c(p.220). Os direitos civis continuam inacessíveis: “Finalmente, ainda hoje muitos direitos civis, a base da seqüência de Marshall, continuam inacessíveis à maioria da população. A pirâmide dos direitos foi colocada de cabeça para baixo” (p.220).

Considerações finais

Este artigo procurou apresentar a evolução do conceito cidadania no decorrer da história ocidental. Como vimos o conceito cidadania esteve e ainda está ligado à conquista de direitos tanto civis (individuais), quanto políticos e sociais. Percebe-se isso na história das civilizações clássicas (greco-romanas); durante a modernidade, com as conquistas dos direitos naturais da sociedade liberal burguesa; até a difícil construção da cidadania no Brasil.
O artigo procurou responder também quais os principais obstáculos para a construção da cidadania brasileira. Acredita-se que o latifúndio agro-exportador do período colonial, bem como o escravismo, o analfabetismo marcaram negativamente nossas origens e, até hoje dificultam avanços no âmbito político-social e econômico. Além dessas, outras razões foram e continuam sendo entraves para a consolidação das instituições política, que impedem os avanços necessários para uma cidadania plena. Na ordem política permanecem ainda algumas mazelas históricas como o patrimonialismo (promiscuidade entre o público e o privado), o personalismo (messianismo), coronelismo com sua nova roupagem, o clientelismo, além da corrupção, entre outros...
Vimos também que conquistas dos direitos no Brasil, comparadas com outros países, deram-se de maneira tardia e inversa. Somente em 1824, mais de 320 anos após a chegada dos portugueses, surgiram os primeiros direitos civis e políticos (antes disso estávamos submetidos à lei da coroa portuguesa). Aos poucos surgiram os direitos sociais, mas, exatamente no momento em que os direitos civis e políticos estavam sendo negados, no período da ditadura de Vargas (1937-45) e na ditadura militar (1964-1985).
Por fim, haveremos de concordar com Benevides (1994, 2000), ao afirmar que, no intuito de reverter a realidade político-social excludente, ou de uma cidadania passiva ou sem “povo”, é necessário recorrer a defesa de mecanismos institucionais, como o referendo, o plebiscito e a iniciativa popular para a construção do que ela chama de uma cidadania ativa ou democracia semidireta: “Assim, discuto a participação política, através de canais institucionais, no sentido mais abrangente: a eleição, a votação (o referendo e plebiscito) e a apresentação de projetos de leis ou de políticas públicas (iniciativa popular): Como defendo a complementaridade entre representação e participação direta, adoto, em decorrência a expressão ‘democracia semidireta’ (p.10) A autora vê dificuldades na implementação desse sistema em países que estão em processo de democratização, no entanto, logo em seguida aponta para a educação política – entendida como educação para a cidadania ativa.

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[1] O autor possui graduação em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora da Imaculada Conceição, FAFIMC de Viamão, mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria e doutorado em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. É Professor do Mestrado em Desenvolvimento e do Departamento de Ciências Sociais da Unijuí – DCS. Endereço: Rua do Comércio, 1820/303, Bairro Industrial, Ijuí, RS – 98700-000. Fone: 0(xx) 55 3332 4284.  Site: http://www.capitalsocialsul.com.br E-mail: dcremo@uol.com.br
[2] Para tratar sobre a origem da cidadania na Grécia recorremos, principalmente, a Minogui (1998), Coulanges (s/d), Aquino (1998), Barker (1978), Kitto (1970), entre outros.
[3] Serviram como fundamentação teórica para esta seção os seguintes autores: Saes (2002), Moisés (2005), Marshall (1967).
[4] Para esta seção utilizou-se argumentos dos seguintes autores: Vianna (1955, 1956), Holanda (2000) Faoro (1958), Leal (1975), Junior (1994) e, principalmente, Carvalho (1996, 1997, 2000, 2002).
[5] No século V havia talvez de uns 80 a 100 mil escravos em Atenas para 30 a 40 mil cidadãos (WETERMANN In: ANDERSON, 1998, p.176).
[6] “O cidadão era o homem cujos pais fossem ambos atenienses natos, sendo 20% da população, os outros 80% eram considerados “bárbaros ou comuns” (THOMAS, 1967, p.62). Segundo Barker (1978, p.45) “havia ali (Atenas) uns 80.000 escravos de ambos os sexos, e apenas 40.000 cidadãos, o que daria dois escravos para cada cidadão”.
[7] Os dados sobre o número exato de habitantes (cidadãos, escravos e bárbaros) de cada cidade-estado são divergentes entre os estudiosos. Diz Kitto (1970, p.110) que “só três poleis tinham mais de 20.000 cidadãos - Siracusa, Acragas (Agrimento), na Cicília, e Atenas”; Atenas: apenas 2.600 Km2, com uma população de talvez 250 mil pessoas (ANDERSON, 1998, p.176). Segundo Aranha e Martins (1993, p.191), apenas 10% dos atenienses eram considerados cidadãos (cerca de meio milhão de habitantes), trezentos mil eram escravos e cinqüenta mil metecos (estrangeiros).
[8] A democracia ateniense, segundo Aquino (1988, p.196), era uma democracia escravista, pois o trabalho escravo era a base da vida econômica da sociedade, e os trabalhadores escravos, que consistiam senão a maioria, pelo menos uma parcela considerável da população da Ática, não possuíam quaisquer direitos civis ou políticos.
[9] Essa percepção mais política da convivência humana fora registrada por Marx nos Grundrisse (Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie – 1857/58). Conferir Ramos (2001).
[10] “O grego, por sua situação geográfica e sua cultura (paidéia), considera-se como privilegiado quanto à possibilidade de realizar a ‘virtude’ do homem: a Cidade - como comunidade consciente - é precisamente a forma política que permite a explicitação da virtude” (CHÂTELET, 1985, p.15).
[11] O fim da cidade, conforme a descrição de Prélot (1974, p.135) é não só assegurar aos cidadãos a vida e a sua conservação (zein), mas o viver bem (euzein). A vida política destina-se a garantir a qualidade e a perfeição da vida.
[12] Aristóteles define a cidade grega como aquela que condiz em “viver como convém que um homem viva”. (A Política, Livro I, 2: 1252 a 24 - 1253 a 37, apud CHÂTELET, 1985, p.14).
[13] Segundo Benevides (1994, p.6), a idéia moderna de cidadania e de direitos do cidadão tem, como é sabido, sólidas raízes nas lutas e no imaginário da Revolução Francesa.
[14] Na continuidade dessa tradição, nos séculos XVII e XVIII, o contratualismo de Locke e de Rousseau forneceu as bases filosóficas do conceito de cidadania do liberalismo e as revoluções Inglesa, Americana e Francesa validaram seu uso ao estabelecer um vínculo jurídico-legal entre as noções de liberdade, igualdade, fraternidade e o Estado-nação (MOISÉS, 2005). 
[15] Nos séculos XVIII e XIX outras correntes teóricas sobre o direito e a cidadania serão contempladas. No entanto, estas teorias vão se contrapor às teorias do jusnaturalismo e do contratualismo. Segundo Corrêa (1999), para o positivismo jurídico (positivismo normativista de Kelsen), bem como para a Escola da Exegese e a Escola Histórica, o que vale é o ensino dogmático - as normas (exclue-se a análise interdisciplinar entre outras áreas, principalmente, com as Ciências Sociais). A lei é a única fonte do direito. Para essas escolas a cidadania é negada.
[16] Esse ensaio faz parte da obra de T. H. Marshall, Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.
[17] Essa evolução cronológica é específica do caso inglês. Em outros Estados a seqüência da evolução dos direitos poder variar, como é o caso do Brasil onde os direitos sociais foram estruturados antes dos demais.
[18] Sobre o encobrimento do outro, conferir Dussel (1993).
[19] Callage Neto (2002, p.29) argumenta que as sociedades Ibéricas (Espanha e Portugal) foram marcadas pelo “hibridismo do absolutismo autoritário contra-reformista católico, o despotismo corporativo muçulmano dos séculos que o precederam na Península Ibérica e um incipiente liberalismo que se gerava com a presença judaica nos marcos da Revolução Mercantil”.
[20] Para maiores informações sobre a situação do indígena na sociedade brasileira atual, consultar relatório do IBGE intitulado: Uma análise dos indígenas com base nos resultados da mostra dos censos demográficos. Disponível em http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/tendencia_demografica/indigenas/indigenas.pdf. Acesso em 13 de dezembro de 2006.
[21] Segundo o sociólogo Florestan Fernandes (1978, p.9), os negros e os mulatos foram os que tiveram “o pior ponto de partida” na tradição da ordem escravocrata à competitiva. Isso significa afirmar que as condições estruturais dos negros e mulatos foram inferiores em relação aos brancos, causando marginalidades e desigualdades na sociedade brasileira.
[22] Nancy Fraser analisa as estratégias, chamadas por ela, de afirmação ou de transformação. Para vencer os dilemas entre redistribuição e reconhecimento, pode-se adotar medidas afirmativas ou transformativas. As medidas afirmativas têm por objetivo a correção de resultados indesejados sem mexer na estrutura que os forma. Já os remédios transformativos têm por fim a correção dos resultados indesejados pela reestruturação da estrutura que os produz (MATOS, 2004). Conferir também Fraser (2001).
[23] Além desses dados, podem-se encontrar outras estatísticas sobre desigualdades raciais na publicação Síntese de Indicadores - 2000, editada também pelo IBGE.

[24] Vianna escreveu, ainda: Evolução do povo brasileiro (1956) e Populações meridionais do Brasil e instituições políticas brasileiras (1955).
[25] Para Vianna, o Estado é o guardião da sociedade, e também sua força vital: “Um poderoso centro de fixação e coordenação capaz de lhe dar direção e vontade” (apud LAMOUNIER, 1990, p.371).
[26] Vianna (1955) discute longamente as doações das sesmarias em que todos os membros da família ganhavam a terra, até mesmo os filhos que ainda estavam por nascer: “Famílias há inteiras – dizia o governador Paulo da Gama, da Capitania do RS – que estão possuindo 15 a 18 léguas de terra. Os pais conseguem 3 léguas e os filhos, cada um outro tanto. Do mesmo modo se tem dado sesmarias de 3 léguas a irmãos e irmãs, e cada um por cabeça, cedendo depois todos em benefício de um só” (p.140). Conferir, igualmente, Freitas (1980).
[27] Caio Prado Júnior procurou entender o país sob o enfoque da interpretação marxista, com o materialismo histórico tendo servido de fundamento teórico para explicar o Brasil. Já Sérgio Buarque de Holanda faz sua análise em Raízes do Brasil, partindo da Economia e da sociedade, de Max Weber. Celso Furtado, Nestor Duarte e Raymundo Faoro herdam a vertente do patrimonialismo de Weber. Para Faoro, a formação do Estado Português está na origem do Brasil, que é, essencialmente, Estadocêntrico, centralizado no poder da autoridade, pois é dela a distribuição do mesmo.
[28] Quanto à participação política dos brasileiros no processo eleitoral, tem-se os seguintes dados: em 1950 – 16%; 1960 – 18%; 1970 – 24%; 1986 – 47%; 1989 - 49%; 1998 – 51% (CARVALHO, 2000A, p.17).
[29] Nos anos de 1920 e 1930, boa parte da intelectualidade, como Alberto Torres, Francisco Campos, Oliveira Vianna e Azevedo Amaral, defendia o fortalecimento do Estado para fazer as mudanças sociais necessárias. Para Alberto Torres, “a sociedade brasileira era desarticulada, não tinha centro de referência, não tinha propósito comum. Cabia ao Estado organizá-la e fornecer-lhe esse propósito” (apud CARVALHO, 2002, p.93).
[30] O tema do clientelismo e do personalismo também é discutido pelo antropólogo Roberto DaMatta (2000, p.94): “O Brasil, até hoje, combina clientelismo com liberalismo e personalismo com lealdade ideológica”. Investigação de opinião realizada nos últimos vinte anos na América Latina tem mostrado que mais de 60% dos eleitores, na hora de escolher seu candidato, levam em consideração muito mais a pessoa do candidato e não o partido ao qual pertence (apud BAQUERO, 2004, p.156).
[31] Entende-se por messianismo a esperança da salvação coletiva posta nas mãos dos indivíduos vistos como dotados de dons especiais.
[32] Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil (2000), tratou, igualmente, das origens da sociedade e da cultura política brasileira, vendo nelas a continuidade da herança das nações ibéricas (Espanha e Portugal), que priorizavam uma cultura personalista (responsabilidade individual) onde imperavam os vínculos pessoais nas relações sociais e políticas, deixando os interesses coletivos em um segundo plano. Buarque de Holanda tratou, ainda, da repulsa ao trabalho, em que o ócio é mais importante do que o negócio. E da promiscuidade entre o público e o privado na vida política do país.
[33] “O Estado português delegou poderes da metrópole, preferiram manter a vinculação patrimonial a rebelar-se [...]. O patrimonialismo também não sofreu contestação no momento da independência, graças à natureza do processo de transição”. (CARVALHO, In: CORDEIRO e COUTO, 2000, p.24). Da mesma forma, para Raymundo Faoro (1958), o patrimonialismo é um dos principais eixos da cultura política brasileira. Com a implantação do capitalismo, surgiu um Estado de natureza patrimonial, cuja estrutura estamental gerou uma elite dissociada da nação: o patronato político brasileiro, que atua levando em conta os interesses particulares do estamento burocrático ou dos “donos do poder”. O sistema patrimonial coloca os empregados em uma rede patriarcal na qual eles representam a extensão da casa do soberano. Para Faoro, esta estrutura política e social tem permanecido na política brasileira desde o Estado Novo (BAQUERO, 2006). Sobre o clientelismo, conferir o trabalho de Andrade (2005).
[34] Caio Prado Júnior (1907-1990), em sua obra Formação do Brasil contemporâneo (1994), discorreu acerca do povoamento do Brasil, do Tratado de Tordesilhas e do Tratado de Madri. No Norte, segundo o autor, prevaleceu a cultura do cacau e da Companhia de Jesus; em São Paulo, o bandeirantismo. Refletiu ainda sobre a aliança entre Espanha e Portugal.
[35] O artigo de Carvalho (1997) também encontra-se disponível em http://www.scielo.br/scielo. Acesso em 10 de março de 2005.
[36] Ver estudos de Marenco dos Santos (2003) e O’Donnell (1998).
[37] Diferentes autores que tratam do tema da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) são unânimes em afirmar que essa legislação foi, em grande parte, copiada da “Carta del Lavoro” adotada pelo regime fascista italiano.