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domingo, 21 de março de 2010

SOBRE O DIA 08 DE MARÇO

História do 8 de março

No Dia 8 de março de 1857, operárias de uma fábrica de tecidos, situada na cidade norte americana de Nova Iorque, fizeram uma grande greve. Ocuparam a fábrica e começaram a reivindicar melhores condições de trabalho, tais como, redução na carga diária de trabalho para dez horas (as fábricas exigiam 16 horas de trabalho diário), equiparação de salários com os homens (as mulheres chegavam a receber até um terço do salário de um homem, para executar o mesmo tipo de trabalho) e tratamento digno dentro do ambiente de trabalho.

A manifestação foi reprimida com total violência. As mulheres foram trancadas dentro da fábrica, que foi incendiada. Aproximadamente 130 tecelãs morreram carbonizadas, num ato totalmente desumano.

Porém, somente no ano de 1910, durante uma conferência na Dinamarca, ficou decidido que o 8 de março passaria a ser o "Dia Internacional da Mulher", em homenagem as mulheres que morreram na fábrica em 1857. Mas somente no ano de 1975, através de um decreto, a data foi oficializada pela ONU (Organização das Nações Unidas).

Objetivo da Data

Ao ser criada esta data, não se pretendia apenas comemorar. Na maioria dos países, realizam-se conferências, debates e reuniões cujo objetivo é discutir o papel da mulher na sociedade atual. O esforço é para tentar diminuir e, quem sabe um dia terminar, com o preconceito e a desvalorização da mulher. Mesmo com todos os avanços, elas ainda sofrem, em muitos locais, com salários baixos, violência masculina, jornada excessiva de trabalho e desvantagens na carreira profissional. Muito foi conquistado, mas muito ainda há para ser modificado nesta história.

Mulheres Brasileiras

Podemos dizer que o dia 24 de fevereiro de 1932 foi um marco na história da mulher brasileira. Nesta data foi instituído o voto feminino. As mulheres conquistavam, depois de muitos anos de reivindicações e discussões, o direito de votar e serem eleitas para cargos no executivo e legislativo.

Marcos das Conquistas das Mulheres na História

1788 - o político e filósofo francês Condorcet reivindica direitos de participação política, emprego e educação para as mulheres.

1840 - Lucrécia Mott luta pela igualdade de direitos para mulheres e negros dos Estados Unidos.

1859 - surge na Rússia, na cidade de São Petersburgo, um movimento de luta pelos direitos das mulheres.

1862 - durante as eleições municipais, as mulheres podem votar pela primeira vez na Suécia.

1865 - na Alemanha, Louise Otto, cria a Associação Geral das Mulheres Alemãs.

1866 - No Reino Unido, o economista John S. Mill escreve exigindo o direito de voto para as mulheres inglesas

1869 - é criada nos Estados Unidos a Associação Nacional para o Sufrágio das Mulheres

1870 - Na França, as mulheres passam a ter acesso aos cursos de Medicina.

1874 - criada no Japão a primeira escola normal para moças

1878 - criada na Rússia uma Universidade Feminina

1901 - o deputado francês René Viviani defende o direito de voto das mulheres



DICAS DE Livros sobre a História das Mulheres


História das Mulheres no Brasil

Autor: Del Priore, Mary

Editora: Contexto



Mulher e Família na América Portuguesa - Coleção Discutindo a História do Brasil

Autor: Figueiredo, Luciano

Editora: Atual



Histórias Extraordinárias - Considerações Sobre a Mulher

Autor: Keller, Wilma

Editora: ALEPH



A Mulher / Os Rapazes: Da História da Sexualidade

Autor: Foucault, Michel

Editora: Paz e Terra



Bakhita - Mulher, Negra, Escrava, Santa - Uma Fascinante História de Liberdade

Autor: Zanini, Roberto Italo

Editora: Cidade Nova



A Mulher na História

Autor: Lemieszek, Dionysia Bonow

Editora: SAGRA-DC LUZZATTO



Breve História da Mulher no Mundo Ocidental

Autor: Bauer, Carlos

Editora: Xama



Familia Mulher Sexualidade e Igreja na História do Brasil

Autor: Marcilio, Maria Luiza

Editora: Associação Jesuíta



Mulher Sujeito e Objeto de Sua Própria História ?

Autor: Santos, Sidney Francisco Reis dos

Editora: Oab-SC



Mulher & Trabalho - 32 Histórias

Autor: Camargo, Maria Silvia

Editora: Editora 34



Corpo a Corpo com a Mulher

Autor: Priore, Mary Del

Editora: Senac São Paulo



Mulheres no Brasil Colonial

Autor: Del Priore, Mary

Editora: Contexto



Histórias de Mulheres

Autor: Montero, Rosa

Editora: Agir



Elas - 52 Mulheres da Bíblia que Marcaram a História do Povo de Deus

Autor: Syswerda, Jean E.; Spangler, Ann

Editora: Mundo Cristão



100 Mulheres que Mudaram a História do Mundo

Autor: Rolka, Gail Meyer

Editora: Ediouro - RJ



As Mulheres e os Silêncios da História

Autor: Perrot, Michele

Editora: Edusc



Bruxas, Comadres ou Parteiras - A Obscura História das Mulheres e a Ciência

Autor: Brenes, Anayansi, Correa

Editora: pelicano

EDUCAÇÃO NA IDADE MÉDIA - UFCG

A Educação na Idade Média. A busca da Sabedoria como caminho para a Felicidade: Al-Farabi e Ramon Llull.

Ricardo da Costa (Ufes)

In: Dimensões - Revista de História da UFES 15. Dossiê História, Educação e Cidadania.

Vitória: Ufes, Centro de Ciências Humanas e Naturais, EDUFES, 2003, p. 99-115 (ISSN 1517-2120).

Resumo: O artigo analisa o tema da educação medieval sob o prisma de seus contemporâneos. Foram selecionados dois filósofos - Al-Farabi e Ramon Llull - que em seus escritos trataram da educação como um instrumento básico do homem para se chegar ao conhecimento, e daí, à felicidade, bem supremo a ser alcançado.

Os medievais refletiram muito a respeito da Felicidade, do Bem, do Belo, da Verdade, enfim, todas as categorias supremas pelas quais a vida humana aspira. Na Idade Média, a Educação era vista como um instrumento para se alcançar a Sabedoria, que conseqüentemente, levaria o homem à Felicidade, um bem desejado por si mesmo e mais perfeito que todos os outros bens (Al-Farabi, 2002: 43-44).

Nossa proposta nesse artigo é demonstrar e compreender como os medievais pensaram a Educação: como o estudo adequado, isto é com disciplina, método e, principalmente, amor à sabedoria, levaria os jovens estudantes à Sapiência. Para isso, selecionamos dois filósofos medievais: Al-Farabi (c. 870-950) e Ramon Llull (1232-1316). Dois homens separados no tempo, por suas religiões, por suas culturas, mas unidos pela cosmovisão e pedagogia medievais. Portanto, dois intelectuais no sentido pleno e perfeito da palavra - e não no sentido gramsciano, conceito inteiramente anacrônico para o período medieval e equivocadamente desenvolvido por Jacques Le Goff em seu Intelectuais na Idade Média (De Libera, 1999).

Esses dois medievais personificam maravilhosamente um tempo que buscou a ciência como um fim nobre em si, e não visando um objetivo específico que, no fim das contas – como vimos ao longo da História – muitas vezes passou a ser mais importante que o próprio ato de conhecer. Pelo contrário, na Idade Média os estudantes eram orientados a considerar importante todo o conhecimento científico, não terem vergonha de aprender com qualquer um e não desprezarem os outros depois de terem alcançado o saber. Assim, trilharei um caminho de amor e bondade para tentar compreender as categorias mentais dos medievais a respeito da Educação.


Na Antigüidade Ocidental a Educação era entendida como uma transmissão de técnicas adquiridas. O ato pedagógico tinha, sobretudo, a finalidade de possibilitar o aperfeiçoamento dessas técnicas através da iniciativa dos indivíduos (Luzuriaga, 1978: 57). A Pedagogia não tinha a dignidade de ciência autônoma, sendo considerada parte da Ética ou da Política, e, por isso, elaborada unicamente em vista do fim que estas propunham ao homem. Os expedientes ou os meios pedagógicos só eram estudados em relação à primeira educação ministrada na infância: ler, escrever e contar (Manacorda, 1989: 85).

A reflexão pedagógica era dividida em dois ramos isolados: um de natureza puramente filosófica, elaborado por conceitos éticos, e outro de natureza empírica ou prática, visando preparar a criança para a vida. O ato de educar era baseado no ser, utilizado para a formação e amadurecimento do homem e a busca de sua consecução completa ou perfeita. Ele era uma passagem gradual da potência ao ato, da infância até a fase adulta (Abbagnano, 2000: 306).

No entanto, o status da criança no mundo antigo era praticamente nulo. Sua existência dependia do poder do pai; poderia ser rejeitada se fosse menina ou se nascesse com algum problema físico. Seu destino, caso sobrevivesse, era abastecer os prostíbulos de Roma e o sistema escravista (De Cassagne). Até o final da Antigüidade, boa parte das crianças pobres eram abandonadas ou vendidas; as ricas enjeitadas - por causa de disputas de herança - eram entregues à própria sorte (Roussel, s/d: 363). Seria necessário a revolução pedagógica levada a cabo pelo cristianismo para que a criança passasse a ser valorizada como ser e recebesse uma orientação educacional direcionada e de cunho ético-integral (Costa, 2002: 17-18).

A base do currículo educacional medieval foi dada pela obra O casamento da Filologia e Mercúrio, do cartaginês Marciano Capela, escrita por volta de 410-427. Nela, o autor, influenciado pela enciclopédia de Varrão (Sobre as Nove Disciplinas), tratou das Sete Artes Liberais, damas de honra daquele casamento: 1) Gramática, 2) Retórica, 3) Dialética, 4) Aritmética, 5) Geometria, 6) Astronomia e 7) Harmonia. Marciano Capela deixou de lado a Medicina e a Arquitetura, por tratarem de coisas terrestres que “...não têm nada em comum com o céu.” (citado em Nunes, 1979: 75).

Platão já havia mostrado a distinção entre o que se chamou o Trivium (Gramática, Retórica e Dialética) e o Quadrivium (Aritmética, Geometria, Astronomia e Música). Ao que tudo indica, Boécio (480-524) foi o primeiro a chamar de Quadrivium as quatro disciplinas aqui relacionadas; o termo Trivium só foi utilizado mais tarde (Monroe, 1977: 113-114; Nunes, 1979: 78). As Artes Liberais eram denominadas artes pois implicavam não somente o conhecimento, mas também uma produção que decorria imediatamente da razão, como várias outras - por exemplo, o Discurso e a Retórica, os Números e a Aritmética), as Melodias e a Música, etc. (Le Goff, 1993: 57).

Assim, ao lado das sete Artes Liberais, desenvolveu-se durante esse primeiro tempo medieval um novo o conceito de Educação. Os pensadores de então acreditavam que as palavras (a linguagem) possuíam em si a possibilidade de resgatar a experiência humana esquecida (Lauand, 1998: 106); o próprio conceito significava literalmente a idéia: educação, educe, “fazer sair”, “extrair”. Por exemplo, na Península Ibérica usava-se o verbo nutrir: o mestre era o nutritor e o estudante o nutritus. Aqueles homens entendiam a educação como um ato saboroso para o intelecto - daí o significado etimológico de sabor para a palavra saber (BRAVO, 2000: 304).

Para os educadores de então, o conhecimento já existia inato no estudante. Restava saber de que modo o aluno seria conduzido da ignorância ao saber. Cabia ao professor acender uma centelha na criança, formá-la, não asfixiá-la (Price, 1996: 88). O estudo era utilizado principalmente para o desenvolvimento da vida do espírito, para a elevação espiritual. Hoje isto se perdeu de uma tal forma que uma das características marcantes da pedagogia moderna consiste no fato de ela ter conseguido dissociar, cada vez mais profundamente ao longo dos últimos 700 anos, o estudo da busca de Deus, de valores éticos e morais, enfim, das virtudes, causa primeira da profunda crise ética pela qual passamos nos dias de hoje.

Até o aparecimento da literatura vernácula (séculos XI e XII), os monges cristãos foram os responsáveis pela manutenção e produção de praticamente todos os textos escritos. Eles preservaram a cultura antiga. Graças a seu meticuloso trabalho realizado nos mosteiros, os monges copiaram os escritos antigos, salvando-os assim das invasões bárbaras da Alta Idade Média (Nunes, 1979: 80-83). Além disso, eles lideraram uma revolução cultural sem precedentes: inventaram nossa caligrafia (minúscula carolíngia), o livro (folio) e nossa forma de leitura (em silêncio), expandindo ao máximo a capacidade cerebral de reflexão profunda (Parkes, 1998: 103-122; Hamesse, 1998: 123-146).

Feitas essas considerações preliminares sobre o conceito de educação e a importância do período medieval para a preservação do conhecimento antigo e suas importantes contribuições para a linguagem, a divisão das artes e as novas formas de se pensar o conhecimento, passamos agora aos filósofos escolhidos para mostrar ao leitor como o saber era entendido, e de que forma o estudante poderia atingir a felicidade em suas buscas íntimas com seu objeto de estudo.

Al-Farabi


Um dos grandes do pensamento muçulmano, Al-Farabi viveu entre 870 e 950 (1). Nascido nas terras da Transoxiana (região da Ásia Central, atual Usbequistão), ali provavelmente começou sua formação intelectual com cristãos nestorianos - o nestorianismo rejeitou a expressão "mãe de Deus" (theotokos) para designar Maria, recomendando "mãe do Cristo" (Christotokos); seus adeptos fundarama igreja sírio-nestoriana (ou caldeu-nestoriana) (Fröhlich, 1987: 39).

Além de escrever comentários sobre textos aristotélicos, Al-Farabi produziu notáveis e influentes obras, a maioria delas dedicadas ao estudo das condições sociais e individuais em que o homem pode alcançar a felicidade (Ramón Guerrero, 2002: 21).

Em seu texto O caminho da Felicidade (Kitab al-tanbih 'alà sabil al-sa'ada), Al-Farabi quer ensinar ao leitor a melhor forma de se atingir a plenitude do belo: através do estudo, da reflexão. Existem, diz ele, três caminhos para a felicidade: a ação (o ato de ouvir, o de olhar, etc.), as afeições da alma (o apetite, o prazer, o gozo, a ira, o medo, o desejo, etc.) e o discernimento por meio da mente.

Para que esses caminhos sejam percorridos, é necessário que o viajante tenha plena liberdade de escolha, o que ele chama de livre-eleição (e o cristianismo chamou livre-arbítrio). Além disso, devemos buscar, saber e praticar as virtudes, faculdades que são um hábito da alma. Por esse motivo, o homem tem a mesma capacidade de fazer o feio que fazer o belo (curiosamente, há pouco tempo, questionado em uma entrevista sobre o atentado islâmico ao World Trade Center, o historiador Eric Hobsbawn afirmou o mesmo).

De qualquer modo, devemos buscar os hábitos belos. Segundo Al-Farabi são:

1) Valentia


2) Generosidade


3) Moderação


4) Perspicácia


5) Sinceridade e


6) Afabilidade (Al-Farabi, 2002: 48).




Os hábitos, para serem hábitos, devem ser praticados. Por exemplo,

A arte de escrever só se consegue quando o homem pratica de maneira usual a ação (...) A excelência da ação de escrever procede do homem somente por destreza na escrita, e a destreza para escrever só se adquire quando antes se acostuma o homem a uma excelente ação de escrever (...) Esta excelente ação de escrever é possível ao homem (..) por causa da faculdade que possui por natureza.
(Al-Farabi, 2002: 52)

Assim, caro leitor, se deseja ser hábil em uma arte, pratique-a! Se quer ser inteligente, estude, se quer escrever, escreva, e assim por diante. Em outras palavras: aprenda fazendo, conselho simples e óbvio conhecido pelos medievais, hoje abandonado por muitas pedagogias ditas modernas.

Por oposição, os hábitos morais feios são a enfermidade da alma, e o homem livre é aquele que consegue discernir o que é dado pela reflexão. O homem é uma besta quando não reflete e também não consegue decidir nada (Al-Farabi, 2002: 62). Caro leitor, não pense que estou colocando palavras em nosso autor. Veja por si mesmo:

Alguns homens têm excelente reflexão e poderosa decisão para fazer aquilo que a reflexão lhes impõe; são aqueles que podemos merecidamente chamar de homens livres. Outros carecem de ambas as coisas e são os que podemos merecidamente chamar homens bestiais e servos.

Outros carecem somente de poderosa decisão, mas têm excelente reflexão: são aqueles que podemos chamar servos por natureza. Isso acontece a alguns que se arrogam a ciência ou se consideram filósofos, e então estão em uma categoria abaixo do primeiro na servidão, e aquela ciência que se arrogam se converte em ignomínia e desonra para eles, pois o que adquirem é algo inútil, pois não obtêm proveito.

Por fim, outros carecem de excelente reflexão embora tenham poderosa decisão; para quem é assim, outros refletem por ele; ou bem se deixará levar por quem reflete por ele, ou não se deixará levar. Caso não se deixe levar, também será uma besta, mas se se deixar levar, terá êxito em muitas de suas ações e, por causa disso, poderá escapar da servidão e participar com os livres.
(Al-Farabi, 2002: 62-63 [os grifos são meus])

Essa bela passagem mostra um grande ensinamento que distingue os pensadores medievais dos atuais pedagogos: a capacidade de julgar é essencial ao sábio - e, lamentavelmente, quantas e quantas vezes ouvi de professores - e depois colegas - que um bom historiador não pode julgar, não tem esse direito...

Mais ainda: o que distingue o homem livre da besta humana é sua capacidade reflexiva! Nessa verdadeira classificação humana em quatro tipos, Al-Farabi eleva as virtudes intelectuais ao grau do excelente discernimento. Caso queiram aplicar a filosofia alfarabiana à História ensinada em nossos dias, posso resumi-la em uma frase: o bom, o verdadeiro historiador apreende o conteúdo histórico, reflete a seu respeito e por fim emite um julgamento de valor. E somente esse último momento intelectual é considerado por Al-Farabi digno e capaz de distinguir o homem livre da besta...

A finalidade desse discernimento intelectual em Al-Farabi sempre será a busca do belo, daquilo que causa prazer e fruição ao espírito. Os fins também são três, como os caminhos: o agradável, o útil e o belo, pois “...todas as artes buscam o belo ou o útil.” (Al-Farabi, 2002: 67)

Por fim, Al-Farabi afirma que as artes necessárias para se trilhar o caminho da felicidade também são três: Filosofia, Lógica e Gramática. A Filosofia se divide em Teórica (Matemática, Física e Metafísica) e Prática (Ética e Filosofia Política, ou "da cidade"). A Felicidade Suprema é alcançar a Filosofia:

Como somente obtemos a felicidade quando estamos de posse das coisas belas, e como só possuímos as coisas belas por meio da arte da filosofia, necessariamente a filosofia é aquela pela qual alcançamos a felicidade. Esta é a que adquirimos por meio da excelência do discernimento.

(Al-Farabi, 2002: 68)

Para se alcançar o discernimento é necessário que o estudante aprenda a Lógica, arte que ensina a discernir o verdadeiro do falso. Por sua vez, para ser lógico, o aluno deve aprender Gramática, “arte que trata das classes das palavras significantes”; “ciência do falar correto e a capacidade de falar corretamente de acordo com o costume dos que falam uma determinada língua” (Al-Farabi, 2002: 74 e 71). O caminho para a felicidade passa, assim, pela Educação: Gramática, Lógica e Filosofia. Ser feliz é aprender a ler, escrever, raciocinar e discernir os bons hábitos dos maus, pois o bem supremo (= a beleza) é trilhar e chegar ao equilíbrio da razão. Só o cultivo da virtude traz a felicidade ao homem (Ramón Guerrero, 2002: 38).

Al-Farabi foi um dos responsáveis pelas teorias mais originais entre os árabes. De natureza universalista, pois abrange desde os filósofos antigos até os cristãos e ainda citando os pensadores que imediatamente o antecederam (ATTIE FILHO, 2002: 198), Al-Farabi representa a síntese muçulmana da busca do conhecimento e o entendimento da harmonia do universo para compreender as questões do homem e do homem no mundo. A busca desses primeiros princípios era possível pela recordação do conhecimento inato no homem. Como disse no início desse texto, ou melhor, como bem disse Jean Lauand, os medievais entendiam a educação como um resgate do conhecimento da experiência humana esquecida (Lauand, 1998).

Para isso, deveria-se começar pela Gramática, para "saber as classes das palavras que significam as classes das noções inteligíveis" (Al-Farabi, 2002: 73-74). Como isso hoje está distante da atual pedagogia: hoje há muitos que defendem a opacidade das palavras, o vazio e a insignificância das formas; buscar a beleza, a elegância e a harmonia verbal e o ritmo são coisas frívolas para os pós-modernos. Nada mais distante da filosofia dos medievais. Al-Farabi - e Ramon Llull, como veremos adiante - buscaram a felicidade através da forma bela, da educação. Passemos então a nosso outro filósofo, dando um salto de trezentos anos, mas ainda unidos nessa perspectiva pedagógica integracionista e total. Isso, naturalmente, sem perder a perspectiva religiosa. No final de seu tratado, Al-Farabi encerra: "Louvado seja somente Deus. Ele me basta." (Al-Farabi, 2002: 75).

Ramon Llull (1232-1316)
Ramon Llull é um dos personagens medievais que está sendo cada vez mais redescoberto, tanto por filólogos, como historiadores e filósofos. Originário de Palma de Maiorca, Llull nasceu em 1232, isto é, pouco depois que sua família se estabeleceu na ilha reconquistada por Jaime I. Sua personalidade multifacetada e que alternava momentos de euforia com estados de depressão profunda está bastante transparente nos temas e na perspectiva adotada em suas obras (quase trezentas). Por exemplo, vejam sua tristeza inconsolável neste belo trecho de seu poema Desconsolo (Desconhort):

Quando cresci e senti a vaidade do mundo,

comecei a fazer mal e entrei em pecado,

esquecendo o Deus glorioso e seguindo o que é carnal. 15

Mas agradou a Jesus Cristo, por Sua grande piedade,

apresentar-se a mim cinco vezes crucificado,

para que O relembrasse e me enamorasse,

e fizesse que Ele fosse predicado

por todo o mundo, e que fosse dita a verdade 20

de Sua Trindade, e como encarnou.

Porque fui inspirado em tão grande vontade,

que nada amei mais do que Ele fosse honrado

e, então, comecei a servi-Lo de bom grado.

Quando me pus a considerar do mundo o seu estado, 25

quão poucos são os cristãos e como muitos Lhe descrêem,

então, em meu coração tive tal concepção

que fosse a prelados e a reis, igualmente,

e a religiosos, com tal ordenamento,

para que ocorresse a Passagem, e com tal pregação 30

que com ferro e fogo, e verdadeira argumentação,

se desse à nossa fé tão grande exaltação

que os infiéis viessem à conversão.

E isso tenho tratado, verdadeiramente, há trinta anos,

mas não obtive nada, pelo que estou doente, 35

tanto, que choro freqüentemente, e estou em languidez.

(Ramon Llull. Desconsolo, II-III. Trad.: Tatyana Nunes Lemos e Ricardo da Costa)

Ramon Llull é um dos escritores mais prolíficos da Idade Média, talvez o maior polígrafo da História (FIDORA, 2003). Seus temas variam desde Botânica, Filosofia e Teologia até Música, Astronomia e Política. Da mesma forma, seu código ético, privilegiado em centenas de escritos moralizantes, deixa claro que sua pedagogia está baseada, como em Al-Farabi, em uma ética e moral religiosas, onde a busca pelo conhecimento passa por sucessivos degraus. Em suma, educar é um ato de elevação espiritual.

Em sua autobiografia, a Vida Coetânea, Llull nos informa que não possuía saber suficiente, nem sequer Gramática, a não ser uma pequena parte; ele define a Gramática como a arte de

...falar e escrever retamente. Por isso, ela é eleita para ser linguagem comum às gentes, que pela distância das terras e da comunicação possuem linguagens variadas.

Filho, se desejas aprender gramática convém saberes três coisas: construção, declinação e vocábulos.

(Ramon Llull. Doutrina para crianças, LXXIII, 2-3 [trad. Ricardo da Costa e Grupo III de Pesquisas Medievais da Ufes]). (2)

Da formação básica de Ramon Llull pouco sabemos. O que se pode afirmar com relativa segurança é que ele aprendeu a falar corretamente graças a uma cultura não clerical notavelmente incrementada pela tradição dos relatos de cavalaria e, de forma mais próxima, pela cultura dos trovadores, pois, como nos diz em sua autobiografia, ele era afeito “na arte de trovar e compor canções e ditados das loucuras deste mundo” (Ramon Llull, Vida Coetânia, I. 2).

Sua conversão ocorreu por volta de 1265, quando tinha aproximadamente trinta anos de idade. Ela veio acompanhada de três desejos: 1) converter os “infiéis” ao catolicismo, 2) criar escolas onde se estudasse a língua dos infiéis e 3) preparar-se para o martírio. A partir de então dedicou-se a essa evangelização, que acreditava ser possível especialmente através do amor e do diálogo.

Nessa perspectiva apologética é que devemos tentar compreender sua pedagogia. O tema da educação luliana pode ser abordado especialmente através de um texto: a obra Doutrina para crianças. É uma das obras mais acessíveis de sua produção, podendo ser usada inclusive como introdução ao seu pensamento. Nela, o autor tenta colocar tudo que considerava importante para a formação religiosa, moral e prática de seu filho. A grande novidade da Doutrina para crianças é ser uma pequena enciclopédia pedagógica escrita em catalão, em uma época na qual o latim era a única língua de ensinamento. Trata-se, portanto, de um documento sobre o ensino primário do século XIII.

lull explica carinhosamente a seu filho que ciência é “saber o que existe”, um dos sete dons dados ao homem pelo Espírito Santo (os outros são a Sabedoria, o Entendimento, o Conselho, a Fortaleza, a Piedade e o Temor). Ele considerava sua ciência espiritual uma graça que deveria ser cultivada e estar a serviço da fé, sendo muito mais nobre que aquela que as crianças aprendiam na escola com o professor, pois daria consciência aos pecadores dos pecados que cometiam e ensinaria as crianças a distinguir o bem do mal, ou melhor, a amar o bem e a ter ódio do mal. Apesar disso, aconselha seu filho a confiar na ciência que os mestres ensinam (Ramon Llull, Doutrina para crianças, XXXIV, 3).

Em sintonia com Al-Farabi e os de seu tempo, a ciência e a pedagogia lulianas têm seu alicerce na consciência do bem e do mal. Por esse motivo, elas já foram definidas como uma educação ética (Carreras y Artau, 1939, vol. I: 610-612). Havia nessa pedagogia uma proposta intrínseca bem de acordo com sua época: o objetivo primeiro de sua educação era o amor a Deus, propósito que Llull definiu como Primeira Intenção:

Amável filho, a intenção é obra do entendimento e da vontade que se movem para dar o cumprimento da coisa desejada e entendida. E a intenção é um ato de um apetite natural que requer a perfeição que lhe convém naturalmente.

Filho, essa intenção da qual tens necessidade é dividida em duas maneiras, isto é, a primeira intenção e a segunda. A primeira é melhor e mais nobre que a segunda porque é mais útil e mais necessária; a primeira é o princípio da segunda, e a segunda é movida pela primeira (...)

Filho, a glória que terás no Paraíso, se nele entrares, será pela segunda intenção, e o conhecimento e o amor que tiveres de Deus serão pela primeira, pois melhor coisa é a intenção de conhecer e amar Deus que ter glória por conhecê-Lo e amá-Lo, pois Deus é mais inteligível e amável que tua glória.

(Ramon Llull. O Livro da Intenção, 1, 2, 8 [trad. Ricardo da Costa e Grupo III de Pesquisas Medievais da Ufes]) (3)

Llull aconselha ao filho que ame a ciência pela intenção que existe, e para que saiba “usá-la e obrá-la melhor e mais lealmente, contrastando-a muito ao demônio” (Ramon Llull. O Livro da Intenção V.19, 6). As crianças deveriam ser educadas desde muito cedo a amar, conhecer, honrar e servir a Deus. Essa consciência moral, passada com um carinho e afeto paternais, tinha como finalidade converter os infiéis, sobretudo muçulmanos e judeus (Bonner, 1986: 38). Não se pode perder nunca de vista essa perspectiva: seus textos tinham sempre esse propósito apologético.

Por sua vez, a aquisição do saber para Llull era uma qualidade apropriada que deveria estar direcionada à qualidade própria dos elementos, uma idéia já encontrada em uma enciclopédia árabe do século X (Ikhwan Al-Safa) (Lohr, 1991: 08). Qual era essa qualidade? Como Deus era pensado em termos ativos - a criação do mundo não fora uma ação de Deus? - cada elemento possuía uma natureza intrínseca e ativa de origem divina, isto é, que tinha uma relação direta com o sagrado.

Assim, a qualidade de cada elemento se relacionava com a de outro elemento. Por exemplo: o fogo é quente e seco, a água fria e úmida, a terra fria e seca e o ar quente e úmido; os medievais acreditavam que essas qualidades interagiam entre si: a umidade da água passava para o ar, que com seu calor interagia com o fogo; o fogo ressecava a terra, que por fim, resfriava a água (Costa, 2002). Veja como Llull transmite esse conhecimento a seu filho:

Amável filho, quatro são os elementos: fogo, ar, água e terra, e destes quatro é composto e unido o teu corpo e tudo o que comes e bebes, apalpas, cheiras e sentes. Tudo o que teus olhos vêem sob a lua pertence aos quatro elementos.

O fogo está sobre o ar, o ar está sobre a água, e a água está sobre a terra. O fogo e o ar são leves, a água e a terra são pesados. Por isso, o fogo e o ar se movem para cima e a água e a terra se movem para baixo.

Filho, a composição se faz de duas maneiras: uma é quando o fogo é seco pela terra, o ar é aquecido pelo fogo, a água é umedecida pelo ar e a terra é resfriada pela água. A outra maneira é quando todos os quatro elementos são unidos em um corpo elementado, como o meu, o teu ou os outros corpos onde estão unidos os quatro elementos.

Filho, através das quatro operações diversas, concordantes e contrárias ditas acima, os elementos se ligam e se ajustam em um corpo e se dividem em outro. E como cada elemento desejaria ser corpo simples por si mesmo, sabe quando pode ter sua simplicidade por si mesmo e em si mesmo sem ter paixão pelos outros elementos. Filho, por isso é significada a ressurreição e a glorificação do corpo ressuscitado.

Filho, as complexões descem dos quatro elementos: cólera, sangue, fleuma e melancolia. A cólera é quente e seca, e é do fogo; o sangue é quente e úmido, e é do ar; a fleuma é fria e úmida, e é da água; a melancolia é fria e seca, e é da terra.

Cada um desses elementos é julgado pelos médicos em quatro graus. Sabes por quê? Porque algumas coisas são mais fortes em complexões que em outras e, por isso, de acordo com os graus, são feitas concordâncias de uns elementos com outros, para sanar as doenças.

(Ramon Llull, Doutrina para crianças, XCIV)

As ciências da Natureza e da Medicina são afins: os quatro elementos (fogo, água, terra e ar), e os quatro humores do corpo (os temperamentos bilioso, sangüíneo, linfático e melancólico) deveriam ser levados em conta pelo médico, pois acreditava-se que a doença ocorria quando havia o destempero corporal e o fim da “virtude moderada”. Daí a necessidade imperativa da busca da virtude, pois virtude era harmonia - vimos que Al-Farabi afirma que o caminho da felicidade passa necessariamente pela moderação.

Este é um ponto muito importante: todo o sistema educativo medieval era uma estrutura análoga à estrutura do universo. Senão vejamos: educar era acender uma centelha no estudante, isto é, estimular um fogo já existente dentro das crianças; essa centelha pueril deveria ser estimulada a buscar as virtudes através do hábito de fazer coisas boas, através do exemplo dado pelo mestre; o hábito da virtude levaria à moderação e, por sua vez, a moderação equilibraria os temperos do homem. Estes temperos, regulados de acordo com a posição dos astros, dos signos do Zodíaco e dos líquidos corporais, traria, junto com o estudo da filosofia, a felicidade, fim supremo desejado por todos.

Por esses motivos, Llull mostra ao filho a teia de dependências que o homem tinha com toda a estrutura do universo:

Filho, saibas que o corpo humano é composto dos quatro elementos (...) As compleições são quatro: cólera, sangue, fleuma e melancolia.

A cólera é do fogo, o sangue do ar, a fleuma da água e a melancolia da terra. A cólera é quente pelo fogo e seca pela terra.

O sangue é úmido pelo ar e quente pelo fogo.

A fleuma é fria pela água e úmida pelo ar.

A melancolia é seca pela terra e fria pela água.

Assim, como essas compleições são desordenadas, os médicos trabalham para que possam ordená-las, pois o homem fica doente por causa do desordenamento delas.

Filho, existe em cada homem as quatro compleições ditas acima, mas cada homem é sentenciado à uma compleição mais que à outra. Por isso, alguns homens são coléricos, outros sangüíneos, outros fleumáticos e outros melancólicos.

(Ramon Llull. Doutrina para crianças, LXXVII, 4-6)

A medicina esta ligada à filosofia, portanto! Esta teoria científica dos humores baseava-se em Hipócrates (c.460-380 a.C.), mas principalmente em Galeno de Pérgamo (c. 129-179 d.C.), médico e anatomista grego. Este fato mostra bem que, ao contrário do que algumas vezes se afirma, os medievais não só conheciam os textos da Antigüidade como davam até valor demais a eles, respeitando-os como autoridades (Price, 1996).

O mundo do ocidente medieval ainda recebeu o reforço da medicina árabe, que também compartilhava a teoria de Galeno (Micheau, 1985: 61-62). É por esse motivo que Al-Farabi constantemente cita os médicos como exemplos úteis na busca da felicidade (Al-Farabi, 2002: 54 e 58). O bem estar do corpo estava condicionado a esses quatro fluidos corporais. Os humores e as constelações determinavam os graus de calor e umidade do corpo e a proporção da masculinidade e feminilidade de cada pessoa. A felicidade educacional passava então pelo corpo são, mas sobretudo, pela mente sã - livre (Al-Farabi), e voltada para Deus (Ramon Llull).

Por fim, as artes mecânicas, também eram um caminho para se obter a felicidade terrena. Llull assim as define:

A arte mecânica é ciência lucrativa manual para dar sustentação à vida corporal. Filho, nessa ciência estão os mestres, isto é, os lavradores, os ferreiros, os marceneiros, os sapateiros, os alfaiates, os mercadores e os outros ofícios semelhantes a esses.

Amável filho, nesta ciência os homens trabalham corporalmente para que possam viver, e uns mestres ajudam outros, e sem esses ofícios o mundo não seria ordenado, nem burgueses, nem cavaleiros, nem príncipes e nem prelados poderiam viver sem os homens que têm os ofícios citados acima.

(Ramon Llull. Doutrina para crianças, LXXIX, 1-2)

Llull aconselha a seu filho que aprenda algum desses ofícios, pois pode precisar deles em algum momento de sua vida (LXXIX, 6). Ele tenta seguir o “exemplo dos sarracenos”. Os muçulmanos oferecem muitos bons exemplos para Ramon Llull. Por exemplo, no Livro das Maravilhas (1288-1289) ele comenta

A principal razão pela qual os cristãos envelhecem e morrem antes dos sarracenos é porque o sarraceno usa mais coisas doces, que são quentes e úmidas, que o cristão. E a água que ele bebe multiplica a umidade, fazendo durar sua umidade radical. E o cristão que bebe vinho, que é quente e seco, multiplica seu calor e consome sua umidade.

(Ramon Llull. Félix ou O Livro das Maravilhas, Livro VIII, cap. 50. Trad.: Ricardo da Costa e Grupo I de Pesquisas Medievais da Ufes)

Na fisiologia medieval, a umidade radical era o humor vital ao qual era atribuída a conservação da vida animal (Domínguez Ortiz, 1962: 50). Comparativamente, enquanto o regime alimentar cristão era baseado na trilogia clássica pão-carne-vinho, o dos muçulmanos era rico em frutas doces, vegetais e vitaminas, como, aliás, recomenda a medicina atual. Os cristãos medievais admitiam que muitos muçulmanos viviam até oitenta ou cem anos, enquanto os cristãos sofriam de gota e envelheciam prematuramente, vítimas de seus próprios excessos alimentares (Flandrin e Montanari, 1998).

Do mesmo modo, Llull afirma que por mais rico que seja um muçulmano, ele não deixa de ensinar a seu filho algum ofício manual para que “se lhe falharem as riquezas, que ele possa viver do seu trabalho” (Ramon Llull. Doutrina para crianças, LXXIX, 3). Por outro lado, ele aproveita a descrição das Artes Mecânicas para fazer uma dura crítica aos burgueses de seu tempo, preocupados apenas em enriquecer (5). Burguês é um dos piores ofícios que existem: o burguês gasta, não ganha, é ocioso. O burguês

...gasta e não ganha, tem filhos e cada um deles está ocioso e quer ser burguês, e a riqueza não é suficiente para todos (...) Nenhum homem vive tão pouco quanto o burguês. Sabes por quê? Porque come demais e suporta pouco o mal. E nenhum homem faz tanto dano aos seus amigos quanto um burguês pobre, e em ninguém está tão ultrajada a pobreza como está no burguês.

Nenhum homem tem tão pouco mérito de esmola, nem de fazer o bem quanto o burguês. Sabes por quê? Porque não suporta o mal que dá. E como o homem foi feito para trabalhar e suportar o mal, quem faz seu filho burguês atenta contra isso pelo qual o homem foi feito. Por isso, esse ofício é mais punido por Nosso Senhor Deus que qualquer outro.

(Ramon Llull. Doutrina para crianças, LXXIX, 9, 11-12)

Além dessa crítica ferina, Llull finaliza seu capítulo sobre as sete Artes Liberais com a metáfora da Roda da Fortuna, um tema muito querido pelos medievais e que mostra a intensa mobilidade social da sociedade medieval - ressalte-se que a sociedade medieval nunca foi um sistema de castas, tinha uma grande mobilidade e as noções de hierarquia e ordem tinham como objetivo possibilitar a fluidez das pessoas (Iogna-Prat, 2002: 313 e 318):

Filho, assim como a roda que se move gira, os homens que estão nos ofícios ditos acima se movem. Logo, aqueles que estão no mais baixo ofício em honramento desejam se elevar cada dia até chegarem à cabeça da roda soberana, na qual estão os burgueses. E como a roda está sempre a girar e a se inclinar para baixo, convém que o ofício de burguês também caia.

(Ramon Llull. Doutrina para crianças, LXXIX, 10)

Os burgueses sempre querem mais; eles são a antítese do mundo de Ramon Llull, daquele mundo medieval voltado para a educação ética, de moral cristã. Os burgueses do tempo de Llull são, segundo sua visão, os responsáveis pelo movimento da Roda da Fortuna (Costa e Zierer). Esta crítica ferina de Ramon Llull aos burgueses mostra seu intento educacional: as Artes existem para que o homem sempre lembre, desde muito cedo, através da Educação, que o saber destina-se a fins mais elevados que o lucro e a avareza. Muitas vezes as ciências são estudadas e praticadas por homens malvados porque “...o demônio se esforça para destruir a intenção pela qual elas existem” (Ramon Llull. O Livro da Intenção, V.19, 6). Para o maiorquino, a ciência e o estudo devem estar a serviço da contemplação divina.

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Os dois autores medievais escolhidos para este artigo ilustram maravilhosamente bem a forma e o conteúdo que a educação medieval tomou, após séculos de reflexões feitas a partir dos textos clássicos, que eles conheciam bem e que serviam de base para os estudos de diversas disciplinas. A Idade Média não só desenvolveu um sistema próprio de pensamento pedagógico, especialmente no campo da Ética, como também aprimorou a divisão dos saberes herdada da Antigüidade, elevando, pela primeira vez, as Artes Mecânicas - ainda hoje infelizmente consideradas como um “trabalho menor” - ao nível das artes liberais, isto é, intelectuais.

Ao buscar a fruição do belo, do bem, os intelectuais medievais elaboraram um conjunto harmonioso e integrado de educação voltada para a ascensão do espírito. O intelecto e a reflexão seriam, a partir de então, cumes desejáveis - e possíveis de serem alcançados por qualquer um, pois também foram lançadas as bases filosóficas do conceito de igualdade. Afinal, o cristianismo não pregou sempre que somos todos irmãos?

A sabedoria como caminho para a felicidade. Concluo esse texto retornando ao título e a Al-Farabi: caminhar em uma trilha mental imaginária em busca da felicidade era, para os medievais, uma estrada de amor, esse sentimento tão difícil de ser definido e ainda mais difícil de ser escolhido atualmente como objeto de estudo histórico.

A felicidade é um fim que todo homem deseja e que todo aquele que se dirige a ela com seu esforço tende a ela tanto que é uma certa perfeição. Isso é algo que não necessita de palavras para ser explicado, pois é sumamente conhecido (...) a felicidade é um dos bens preferidos (Al-Farabi, 2002: 43).

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Notas

(1) Agradeço ao querido amigo e grande erudito em cultura e filosofia medieval muçulmana, Prof. Dr. Rafael Ramón Guerrero, catedrático da Universidad Complutense de Madrid, que carinhosamente enviou-me O Caminho da Felicidade, de Al-Farabi, lindo texto que traduziu e comentou.



(2) Este trabalho de tradução contou com a participação de parte do Grupo III de Pesquisas Medievais da Ufes, a saber, os graduandos em História Felipe Dias de Souza, Revson Ost e Tatyana Nunes Lemos.



(3) Para a teoria da Primeira e Segunda Intenção, ver RAMON LLULL. O Livro da Intenção (trad. Ricardo da Costa e Grupo III de Pesquisas Medievais da Ufes - Alessandra André, Angélica Virgílio, Cintia Morello, Elgiane Scheila de Souza, Felipe Dias de Souza, Ivana Moraes, Jéssica Fortunata do Amaral, Leonardo Gonçalves Prates, Luciana S. Andrade, Márcia Regina Velozo, Michele Cordeiro, Paulo César Passamai, Revson Ost, Silvana Correa Batista e Tatyana Nunes Lemos). Este projeto de pesquisa registrado na Ufes é interdisciplinar e interinstitucional, pois conta com a revisão técnica do Prof. Dr. Prof. Dr. Alexander Fidora (Goethe-Universität Frankfurt/Alemanha), e o apoio do Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio, que publicará todos os documentos medievais traduzidos pelos Grupos de Pesquisas Medievais da UFES em sua “Coleção Raimundo Lúlio”.



(4) O Grupo I de Pesquisas Medievais da Ufes foi composto pelos graduandos de História Bruno Oliveira, Eliane Ventorim e Priscilla Lauret Coutinho, e este trabalho fez parte de um projeto de pesquisa registrado na Ufes.



(5) Não confundir os modernos conceitos de burguês e burguesia - associados sempre à tradição marxista - com o conceito medieval de burguês, isto é, o morador do burgo, da cidade. Ver especialmente LE GOFF, Jacques. Por amor às cidades. Conversações com Jean Lebrun. São Paulo: Editora UNESP, 1988. Para os referidos conceitos na tradição marxista, ver BOTTOMORE, Tom (ed.). Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 38-40.



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RAMON LLULL. Vida Coetânia (1311) (trad. de Ricardo da Costa).



RAMON LLULL. Félix ou o Livro das Maravilhas (1288-1289) (trad. de Ricardo da Costa e Grupo I de Pesquisas Medievais da Ufes [Bruno Oliveira, Eliane Ventorim e Priscila Lauret Coutinho]).



RAMON LLULL. Doutrina para crianças (1274-1276) (trad. de Ricardo da Costa e Grupo III de Pesquisas Medievais da Ufes [Felipe Dias de Souza, Revson Ost e Tatyana Nunes Lemos]).



RAMON LLULL. O Livro da Intenção (c. 1283) (trad. Ricardo da Costa e Grupo III de Pesquisas Medievais da Ufes [Alessandra André, Angélica Virgílio, Cintia Morello, Elgiane Scheila de Souza, Felipe Dias de Souza, Ivana Moraes, Jéssica Fortunata do Amaral, Leonardo Gonçalves Prates, Luciana S. Andrade, Márcia Regina Velozo, Michele Cordeiro, Paulo César Passamai, Revson Ost, Silvana Correa Batista e Tatyana Nunes Lemos]).



RAMON LLULL. Desconsolo (c. 1295) (trad.: Tatyana Nunes Lemos e Ricardo da Costa).



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PSS 1 - A CIDADANIA NA DEMOCRACIA GREGA

A cidadania na democracia grega (Atenas)


Pensar a cidadania nos limites do Estado nacional brasileiro ou até mundialmente, é uma necessidade prioritária nos dias atuais. Contudo essa cidadania de hoje não pode ser vista como uma repetição, continuidade ou até resultado de um desenvolvimento progressivo da cidadania antiga. A experiência da nossa cidadania de direitos (civis, políticos e sociais) é única na História humana e tem inicio no processo de dissolução das tiranias absolutistas e nas lutas por direitos que foram travadas no interior do Estado liberal plenamente consolidado no decorrer do século XIX.

Essa experiência histórica, portanto, difere integralmente das experiências de democracia e cidadania da antiguidade, embora muitos insistam em ver o mundo Greco-Romano como único berço da civilização atual. Se existe algo que poderemos fazer, portanto, será tentar aproximar dois mundos distintos, direcionando nosso olhar para aquelas contribuições que as experiências cidadãs antigas podem oferecer a nossa, ressaltando suas especificidades históricas.

Iniciemos essa discussão pela mais explicita de todas as diferenças entre o mundo antigo e o atual. O mundo Greco-Romano não estava estruturado como o mundo atual e seus Estados nacionais. As cidades-Estado, “que conhecemos pela tradição escrita, pela epigrafia ou pelas fontes arqueológicas, eram muito diferentes entre si: nas dimensões territoriais, riquezas, em suas histórias particulares e nas diferentes soluções obtidas, ao longo dos séculos, para os conflitos de interesses entre seus componentes. A maioria delas nunca ultrapassou a dimensão de pequena unidade territorial, abrigando alguns milhares de habitantes – não mais que cinco mil, quase todos envolvidos com o meio rural. Outras, de porte médio, chegaram a congregar vinte mil pessoas. Algumas poucas, portos comerciais ou centros de grandes impérios, atingiram a dimensão de verdadeiras metrópoles, com mais de cem mil habitantes – e, por vezes, como na Roma imperial, chegaram à escala de um milhão de pessoas. (...) sob o termo cidade-estado abarcamos povos distintos, culturas diferentes, com seus próprios costumes, hábitos cotidianos, leis, instituições, ritmos históricos e estruturas sociais, (...) cujo destino foi, ao longo do tempo, marcado por imensa variedade de projetos e soluções”. (GUARINELLO, Norberto Luiz. Cidades-Estado na antiguidade clássica. In PINSK, Jaime (org.). História da cidadania. São Paulo: Contexto, 2008. P.30).

Considerando, portanto, essa especificidade essencial, a da cidade-estado, nossa trajetória inicial será a de uma história da cidadania na cidade-estado de Atenas, não sem antes situá-la no contexto histórico-social do mundo grego.

As origens das cidades-estado na Grécia


A Grécia antiga

A Grécia antiga abrangeu a região denominada Hélade, compreendendo o sul da Península Balcânica (Grécia Continental), a Península do Peloponeso (Grécia Peninsular), as Ilhas do Mar Egeu (Grécia Insular), as colônias no litoral da Ásia Menor (Grécia asiática) e a porção meridional da península itálica (Magna Grécia). Na Grécia continental, região em que viveram os mais longínquos antepassados dos gregos, o solo predominante e árido e pedregoso, o que dificultava a prática da agricultura. O relevo, mais acidentado, tornava difícil a comunicação entre os vários pontos do interior dessa região, contribuído para o seu fracionamento político. No litoral, por outro lado, havia a facilidade de comunicação pelo mar. sendo extremamente recortada, a costa grega apresentava uma série de portos naturais, dos quais embarcações partiam com destino as ilhas do Egeu, a costa da Ásia menor ou a outros pontos da própria Grécia continental.

Do ponto de vista étnico, a civilização helênica teve como origens os cretenses (Civilização Egéia), os pelasgos (habitantes primitivos da Península Balcânica) e os povos indo-europeus (árias ou arianos – Aqueus, Eólios, Jônios e Dórios) que desceram do Planalto do Cáucaso e, por volta de 2000 a.C., penetraram os Balcãs. A essa migração é dado o nome de “invasionismo ária”.

A história da Grécia antiga é dividida em cinco períodos:

PERÍODOS DA HISTÓRIA GREGA

PRÉ-HOMÉRICO – Séculos XX a XII a.C.

HOMÉRICO – Séculos XII a VIII a.C.

ARCAICO – Séculos VIII a VI a.C.

CLÁSSICO – Séculos VI a IV a.C.

HELENÍSTICO - A partir do século IV a.C. (a Grécia perde sua independência, caindo sob domínio macedônio).

A desagregação das comunidades gentílicas e o surgimento das cidades-estado

A estrutura econômica, social, política e religiosa típica do período homérico grego foi formada pelas comunidades gentílicas ou genos. Essa unidade social, de cunho familiar, tinha como autoridade o Pai clânico (Pater), que, ao morrer, era substituído pelo primogênito. Tratava-se de um grupo consangüíneo, cujos matrimônios eram de caráter minúsculo e endogâmico (casamentos realizados dentro da própria família). Quanto ao aspecto econômico, o trabalho e a posse dos meios de produção eram coletivos e a produção era distribuída uniformemente entre todos os membros do clã. Em conseqüência, a sociedade era igualitária, não havendo diferenças econômicas e sociais. No interior do genos, A hierarquia social era baseada nas relações de parentesco, ocupando o topo da pirâmide social aqueles que eram mais próximos ao pater, cujo poder político decorria do fato de oficiar o culto aos antepassados e, também, de comandar o exército familiar. A legislação era oral e consuetudinária.

As comunidades gentílicas existiram durante quase todo o período homérico. Apenas por volta do século VIII a.C., iniciou-se o processo de desintegração dos genos, fenômeno que evoluiu mais rapidamente em algumas regiões do que em outras.

O fator preponderante foi o crescimento dos genos e a decorrente escassez de gêneros alimentícios – já que a produção agrícola coletiva era ineficiente e as terras férteis escassas. A luta pela sobrevivência, que dependia basicamente da terra, desencadeou uma serie de guerras entre os genos fato que, por sua vez, impulsionou a ocorrência de transformações que determinaram mudanças nas estruturas internas e nas relações entre os genos aliados. A primeira dessas grandes mudanças foi o surgimento da propriedade privada da terra e, Consequentemente, o estabelecimento de desigualdades sociais. Os parentes mais próximos do Pater, que passaram a ser chamados de Eupátridas (os “bem nascidos”), receberam as melhores terras; os mais afastados, denominados Georgoi (agricultores), ficaram com as terras menos férteis. Os agregados a parentela do Pater não adquiriam qualquer posse fundiária, recebendo a alcunha de Thetas (“marginais”). A partir daí, o processo evoluiu para a constituição de autenticas classes sociais tendo a frente os Eupátridas – elite dominante – formadores de uma aristocracia (do termo grego “aristoi”, que significa os “melhores”). Segundo AQUINO, “Efetivamente não é um problema fácil precisar o aparecimento da propriedade privada na origem das sociedades. Pouco a pouco, os membros dos genos começaram a separar parcelas de terra e a convertê-las em propriedade privada familiar. (...) As famílias dos chefes recebiam os melhores lotes. Foi-se estabelecendo, assim, uma nítida diferenciação social, a partir da riqueza, liquidando a igualdade primitiva. Da comunidade começou a destacar-se uma aristocracia de nascimento, cujo poder se baseava na propriedade da terra. A desintegração do regime gentílico provocou o aparecimento de thetas – membros da comunidade excluídos da partilha das terras. As péssimas condições de existência dos thetas estão descritas nos poemas homéricos. Ao mesmo tempo, começaram a aparecer os primeiros escravos, em numero reduzido: tratava-se da escravidão domestica ou patriarcal, em que o escravo trabalhava ao lado do homem livre, seu proprietário, auxiliando-o nas tarefas produtivas (...)”.(AQUINO, Rubim Santos Leão de. História das sociedades: das comunidades primitivas às sociedades medievais / Rubim Santos Leão de Aquino, Denize de Azevedo Franco, Oscar Guilherme Pahl Campos Lopes. – Rio de Janeiro: Ao livro técnico, 2000, p.177.).

Por outro lado, em decorrência das guerras, as relações entre os genos aliados tenderam a se caracterizar por um processo de aglutinação. Na eventualidade de ameaças militares, os genos se agrupavam, formando as fratrias, que, reunidas, deram origem às tribos. Da reunião de várias tribos surgiram os demos que, unificados, originaram a Cidade-Estado (Polis), instituição política típica da civilização grega.

Com a crise das comunidades gentílicas, a Grécia continental se transformou em palco de inúmeros conflitos e tensões sociais: a escassez de solos agricultáveis e a crescente expansão demográfica levaram inúmeros excedentes populacionais gregos a buscar outras regiões para sua sobrevivência. Teria início o processo de colonização helênica do Mediterrâneo, onde foram criadas inúmeras Polis, notadamente na área meridional da Península Itálica e na Ilha da Sicília (Magna Grécia). Também no litoral do Mar Negro, floresceram inúmeras colônias gregas. Esse processo migratório foi denominado de segunda diáspora grega.

Os primórdios das cidades-estado gregas (SÉCULO VIII A.C.)

A cidade-Estado não foi uma invenção dos gregos. Muito antes, a sociedade mesopotâmica dos sumérios e os fenícios já se haviam organizado politicamente em cidades-Estado. Na Grécia, essa forma de organização política teve origem no final da época homérica e no inicio da chamada época arcaica. Sua origem está ligada à progressiva desintegração dos genos, fenômeno marcado pelo estabelecimento da propriedade privada e de desigualdades sociais, quando uma aristocracia de nascimento distanciou-se do restante da comunidade, apoderou-se dos meios produtores de riquezas e, consequentemente, do poder político.

Além do exposto, o processo de formação das Polis gregas foi acompanhado de algumas outras características gerais, a saber:

• As comunidades (ligadas pelo parentesco direto ou indireto) se uniram obedecendo ao principio da territorialidade ou da vizinhança. As comunidades de vizinhança se uniram dando origem a Polis, com governo próprio, em um processo conhecido como sinecismo (agrupamento).

• As cidades-estado se formaram a partir do desenvolvimento da propriedade não coletiva da terra. Se o caso de Esparta foi o da formação de uma associação de proprietários que se organizava em torno de um Estado militarizado, a imensa maioria delas surgiu como uma associação de proprietários privados da terra, condição restrita aos membros da comunidade. Assim, a cidadania da polis em seu inicio estava ligada a terra, o sentimento de pertencimento a essa comunidade era o da apropriação individual das terras que antes haviam sido coletivas.

• O fato que acelerou a formação das Polis gregas foi o desenvolvimento das trocas e do artesanato. O aparecimento de uma escravidão embrionária tornou possível a separação entre agricultura e artesanato. A separação entre agricultura e artesanato, por sua vez, aumentou a necessidade de trocas. Cedo, o volume das trocas não mais comportou restringir-se ao quadro econômico dos genos, de nível de subsistência, passando a ocorrer de forma mais ampla e sistemática. Ao mesmo tempo, todo esse processo foi dinamizado pela expansão territorial (segunda diáspora) que aumentou em variedade e quantidade o fluxo das mercadorias. Assim, em linhas gerais, as Polis foram os núcleos urbanos onde as trocas comerciais e o artesanato se desenvolveram rapidamente.

• O progressivo crescimento das atividades comercial e artesanal foi acompanhado pelo aumento do uso do braço escravo nas atividades urbanas e na agricultura. A Polis tornou-se o centro da exploração dos escravos e dos camponeses pobres, pois abrangia o núcleo urbano e as áreas adjacentes. A sociedade grega transformou-se em sociedade escravista, composta de duas classes antagônicas: de um lado, a aristocracia proprietária de terras e escravos; de outro, os escravos, que não possuíam direitos. Entre essas duas classes sociais básicas, situavam-se: no campo, pequenos proprietários, geralmente endividados com a aristocracia fundiária; na cidade, os artesãos livres, ameaçados com o predomínio dos escravos nas oficinas, os comerciantes e os armadores, fortalecendo-se com o comércio marítimo. Assim, a desagregação das comunidades gentílicas gerou profundos antagonismos internos.

• Mas as Polis gregas não foram marcadas somente por antagonismos internos. Cada uma delas, consciente de sua soberania, tendia a expandir-se à custa de regiões vizinhas gerando rivalidades externas (entre as Polis). O estado de permanente rivalidade entre as cidades gregas beneficiava os comerciantes de escravos (os militarmente derrotados eram escravizados) e possuía relação com os conflitos sociais internos das cidades porque a crescente escravização impedia o uso produtivo da população excedente.

• Ao longo da antiga História da Grécia, floresceram mais de 160 cidades-Estado. Quase todas elas eram localizadas em colinas, cujo símbolo da autonomia era a Acrópole, templo construído no topo das elevações topográficas onde também se localizavam a residência do Basileu (Rei) e o local de reunião do conselho de aristocratas. Com o desenvolvimento das trocas comerciais e do artesanato, surgiu a parte baixa da cidade: a Ágora (praça do mercado usada para transações comerciais e reuniões públicas) e, nas cidades litorâneas, o porto (por exemplo, o Pireu, em Atenas), por onde se fazia importação e exportação de mercadorias. Além desses elementos típicos as cidades gregas possuíam teatro, ginásio de esportes e uma fonte que abastecia um reservatório de água.

• As cidades gregas eram, em geral, pequenas, contribuindo para isto alguns elementos: os meios de subsistência eram relativamente escassos para atender a demanda do crescimento demográfico e a concentração fundiária limitava ainda mais a viabilização da sobrevivência para grandes concentrações humanas tanto que, no século VIII a.C., os gregos enfrentaram a “alternativa de morrer de fome ou exportar o excedente da população para além-mar, com o objetivo de tomar posse, pela força militar, de novas terras cultiváveis”. (TOYNBEE, A. J., Helenismo: História de uma civilização. Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1969, p.48). Contudo, vale ressaltar, Esparta e Atenas se constituíram como exceções ao padrão dimensional das cidades gregas. Segundo BURNS, “(...) Esparta e Atenas tinham, invariavelmente, a maior extensão e população. No auge de seu poder. Atenas e Esparta, cada qual com uma população de cerca de 400.000 habitantes, contavam com uma força numérica aproximadamente três vezes maior que a da maioria dos Estados vizinhos”. (BURNS, EDWARD McNALL. História da Civilização ocidental: do homem das cavernas as naves espaciais / EDWARD McNALL BURNS, ROBERT E. LERNER, STANDISH MEACHAM; São Paulo: Globo, 2003, p.95).

ATENAS

Atenas, fundada pelos jônios, localizava-se no centro da planície da Ática, próxima ao mar Egeu. A região, circundada por montanhas, foi poupada da invasão dórica, fato que conferiu maior estabilidade ao desenvolvimento inicial da cidade. A Ática, cujo solo era relativamente pouco fértil, conhecia, entretanto, uma boa reserva florestal que fornecia abundante madeira para a construção naval, além de dispor de grandes reservas de prata e chumbo, muita argila e grandes pedreiras de calcário e mármore. O ferro, por seu turno, era escasso. Todas essas condições naturais, acrescidas ao fato de que próximo à Atenas estava situado o Porto de Pireu, foram as causas da vocação comercial marítima da cidade. Desde seu início, Atenas desenvolveu o comércio no Mediterrâneo, tornando-se importante pólo econômico da região. As navegações tiveram um decisivo impacto sobre a sociedade ateniense: ao contrário dos espartanos, voltados as questões internas e culturalmente limitados, os atenienses tornaram-se verdadeiros “cidadãos do mundo”, recebendo influências de inúmeros povos. Isso, inegavelmente, contribuiu para que Atenas não só se tornasse uma cidade economicamente próspera, mas também culturalmente rica. Nas ruas da Polis eram ouvidas inúmeras línguas estrangeiras, dando a cidade um caráter cosmopolita.

”A ocupação da Ática pelos indo-europeus (arianos) data do século X a.C., quando os Jônios, em penetração pacifica, miscigenaram-se com os antigos habitantes, estabelecendo-se em aldeias fortificadas e vivendo sob o regime gentílico. Mais tarde, algumas dessas cidadelas fundiram-se formando Atenas. O historiador grego Tucídides escreveu que a fusão dos povoados da Ática para fundar Atenas e a criação do Estado deveu-se ao rei Teseu, que aboliu os conselhos e magistraturas e reuniu todos os habitantes em uma cidade, onde instituiu um só conselho... a esse processo denominamos sinecismo”. (AQUINO, Rubim Santos Leão de. História das sociedades: das comunidades primitivas às sociedades medievais / Rubim Santos Leão de Aquino, Denize de Azevedo Franco, Oscar Guilherme Pahl Campos Lopes. – Rio de Janeiro: Ao livro técnico, 2000, p.189.). Desta forma, Atenas se originou da concentração de quatro tribos que, progressivamente, foram sendo unificadas em torno de um centro político instalado na Acrópole e que teve no regime monárquico o seu marco político inicial.

A Atenas oligárquica

Como resultado político da decomposição da sociedade gentílica, através do processo conhecido como sinecismo, Atenas, inicialmente, organizou-se sob o regime monárquico. O fortalecimento da aristocracia, composta por grandes proprietários de terra e escravos, solapou as bases da monarquia que, pouco a pouco, foi suplantada por uma oligarquia. Tal evolução ocorreu pacificamente, através do crescente esvaziamento das funções do Basileu (Rei), que acabaria se tornando apenas um chefe religioso, com poder simbólico. Segundo AQUINO, “No século VIII a.C., a realeza também já se encontrava em dissolução: a obediência ao rei era apenas nominal, por parte dos chefes das famílias nobres ou clãs, reunidos no Areópago. Nos meados do século, a realeza cedeu lugar ao regime aristocrático: o Arcontado, composto por nove Arcontes, substituiu o rei nas funções executivas. Os Arcontes, eleitos pela aristocracia territorial que se tornava escravista, tiveram mandato, a principio, com duração de dez anos; depois, de apenas um ano. O principal era o Arconte Epônimo, com funções administrativas; O Arconte Basileus, ficou com as funções religiosas; as funções militares (TAMBÉM JURIDICAS SOBRE ESTRANGEIROS) couberam ao Arconte Polemarca e os Arcontes Thesmothetas aplicavam a justiça sobre os atenienses que gozavam ou não dos benefícios da cidadania. Através do Areópago, a aristocracia territorial estabelecia as diretrizes de atuação dos magistrados”. (AQUINO, Rubim Santos Leão de. Op. Cit., p.190.).

Todos esses magistrados eram eleitos pela Eclésia, assembléia que representava os cidadãos atenienses. Havia ainda o Areópago, conselho formado exclusivamente por elementos recrutados dentre a aristocracia, responsável pela fiscalização dos Arcontes e elaboração das leis.

Nessas formas iniciais de estrutura política encontramos o sentido de cidadania entre proprietários de terra. Como vimos, de inicio, a cidade-estado foi uma associação de proprietários de terra. Mas o fato é que no interior dessa associação somente os grandes proprietários formulavam, decidiam e executavam políticas; ele eram, de fato, a comunidade, a Polis no sentido do termo. A forma política inicial dessa associação foi uma monarquia que, porém, logo foi substituída pela oligarquia. No regime oligárquico ateniense os grandes proprietários de terra (o grupo dos eupátridas) detinha todo o poder político já que dominavam o Arcontado (responsável pelo poder executivo), o Areópago (o conselho que de fato decidia) e a Eclésia (a assembléia dos proprietários que escolhiam os magistrados – Arcontes e conselheiros). Contudo, o desenvolvimento sócio-economico de Atenas e os conflitos sócio-políticos subseqüentes, mudariam essa configuração, gerando novas estruturas de poder e ampliando a própria abrangência da cidadania. A democracia ateniense e seu sentido de cidadania foi o ponto culminante das transformações.

A democracia escravista ateniense

O regime democrático foi estabelecido em Atenas na época do governo de Clístenes, ou seja, no final do século VI a.C. Eleito Arconte em 506. a.C., Clístenes empreendeu uma série de reformas política e administrativas, democratizando o regime ateniense.

As reformas de Clístenes instalaram em Atenas um novo regime político, cujas bases fundamentais eram a igualdade política de todos os cidadãos e a participação direta dos mesmos na maquina governamental. O principal aspecto de suas reformas foi à criação de uma nova estrutura de recrutamento para participação política. Os cidadãos foram distribuídos em demos (unidades organizacionais de caráter local às quais todos os indivíduos eram obrigados a pertencer formalmente). Os demos foram distribuídos em três grupos, num total de cem demos:

OS DEMOS DA ATENAS DEMOCRÁTICA

DEMOS DA CIDADE DE ATENAS - Agrupava os indivíduos dedicados as atividades de comércio e artesanato, além dos trabalhadores urbanos.

DEMOS DO LITORAL - Congregava pescadores e navegantes.

DEMOS DO INTERIOR - Reunia os grandes e pequenos proprietários rurais.

A divisão em demos veio a substituir a tradicional divisão em 04 tribos e as tribos tradicionais foram, para efeito de recrutamento político, substituídas por novas. Nelas, haviam representantes de todos os setores sociais (exceto escravos, estrangeiros e mulheres). Nessa nova organização social não havia chance de a antiga base aristocrática prevalecer porque os representantes políticos escolhidos pelas tribos tinham que pertencer a todos os demos que delas faziam parte, o que pluralizava a escolha. As tribos formavam a base para o recrutamento militar e político.

Ao mesmo tempo, foi realizada a reforma das instituições políticas:

A DEMOCRACIA DE ATENAS (REFORMAS INSTITUCIONAIS DE CLÍSTENES)

ARCONTADO – Passou a exercer apenas funções de natureza honorífica.

AREÓPAGO – Passou a exercer apenas o papel de tribunal religioso.

BULÉ (CONSELHO DOS 500) – Foi ampliado para 500 membros eleitos a razão de 50 membros por tribo. Sua principal função era preparar os projetos de lei que seriam votados irrevogavelmente pela Eclésia.

HELIEU – Transformou-se no supremo órgão judiciários e seu membros eram escolhidos por sorteio.

ECLÉSIA – A Assembléia popular, foi transformada no supremo órgão de decisões em Atenas. Dela faziam parte todos os cidadãos de Atenas, ou seja, aqueles que fossem registrado no demos de origem e fossem filhos de pai ateniense e maiores de 18 anos. Da assembléia eram excluídos os estrangeiros, as mulheres e os escravos.

ESTRÁTEGOS (10) – Chefes militares eleitos anualmente pelas tribos.

INSTITUIÇÃO DO OSTRACISMO – Espécie de medida defensiva do Estado contra o ressurgimento dos regimes anteriores. Consistia no banimento, perda dos direitos políticos e confisco temporários de bens (por um período de 10 anos) de qualquer cidadão cuja atuação política fosse considerada uma ameaça a democracia. O ostracismo era votado, exclusivamente, na assembléia.

Pode-se dizer que Clístenes ampliou e aprofundou as reformas de Sólon, democratizando o sistema. Aos comerciantes, interessados em dirigir politicamente Atenas, era fundamental ampliar a sua base eleitoral que era conquistada voto a voto. Contudo. “A massa da população permaneceu miserável e os cidadãos que dela se originavam exerciam seu direito ao voto mediante compromissos com os que tinham posses. Como estes eram, agora, majoritariamente comerciantes, o exercício do poder político foi consolidado nas mãos dessa classe”. (ROSTOVTZEFF, M. História da Grécia. São Paulo, ZAHAR editores, 1991, p. 121).

A democracia ateniense era uma democracia escravista e excludente: o trabalho escravo era a base da vida econômica da sociedade, e os escravos constituíam, senão a maioria, pelo menos uma parcela significativa da população da Ática. Os escravos não tinham qualquer direito político. Os estrangeiros, em geral comerciantes, só possuíam direitos civis e estavam excluídos da vida política. Já as mulheres não possuíam direitos políticos e tinham seus direitos limitados pelo pai ou pelo marido. “Nestas condições, a democracia ateniense, quando confrontada com as nossas modernas democracia, surge como uma oligarquia de fato, simplesmente menos restrita que uma oligarquia de direito. Mas as concepções modernas não nos fornecem uma medida adequada. Sua inadaptação, salta aos olhos no que diz respeito a escravidão, que todas as sociedades antigas admitiram como uma necessidade natural, uma realidade fundamental. Por definição, o cidadão deve gozar de sua liberdade pessoal: como imaginar-se o escravo tornando-se politicamente igual àquele que continuaria a ser seu senhor e como evitar esta monstruosidade (a escravidão) sem prejudicar a organização social?”. (AYMARD, A. e AUBOYER, J. O oriente e a Grécia antiga. In História geral das civilizações, Tomo I, 1º volume, São Paulo, DIFEL, 1955, p.124).

Em Atenas, a democracia era direta e não representativa. Noutros termos, as decisões políticas não eram tomadas por delegados ou representantes do povo, mas sim pelos cidadãos reunidos na Ágora (praça). Deve-se lembrar que, ao contrário do que ocorre nas atuais democracias ocidentais marcadas pelo conceito de “direitos dos cidadãos”, a democracia ateniense consistia no dever da participação de todos na vida política. Em síntese: hoje, os indivíduos reclamam seus direitos; na Atenas democrática, o indivíduo era obrigado a opinar sobre os assuntos da Polis. Daí o termo Política: a arte de bem conduzir a administração da cidade.

O auge da democracia em Atenas

Do ponto de vista político, o período clássico de Atenas foi marcado pelo apogeu da democracia, em parte devido a liderança de Péricles, cujo governo – no século V a.C. – foi denominado de o “século de ouro”. Durante sua gestão (461 a 429 a.C.), o regime democrático ateniense baseou-se em dois princípios fundamentais: o da isonomia (normas iguais), que propunha a igualdade de todos perante a lei, e o da isocracia (poderes iguais), que consistia no direito da participação de todos nas decisões políticas. Como abordamos no capitulo anterior, a democracia ateniense era direta, enquanto hoje, nas sociedades ocidentais, prevalece a democracia exercida através de representantes. No tempo de Péricles, os cidadãos se reuniam na Ágora (praça) para conduzir os assuntos da Polis. O governo era, dessa maneira, “do cidadão e pelo cidadão”. As assembléias populares eram comícios ao ar livre que agrupavam todos os cidadãos masculinos em idade militar e filhos de pais atenienses.

Péricles representava os interesses de amplas camadas do povo ateniense: comerciantes, artesãos, pequenos proprietários e grandes cultivadores de vinha e oliveira, cujos produtos destinavam-se ao comercio externo. Como líder do partido democrático ou popular, procurou realizar uma política que atendesse as reivindicações das camadas mais populares da sociedade. Nesse sentido foi empreendida uma serie de reformas que não alteraram o caráter de classe da sociedade: a democracia escravista saiu fortalecida. Essas reformas foram progressistas, na medida em que concederam maior espaço de ação política as camadas populares. “Durante seu governo instituiu-se a mistoforia, ou seja, a remuneração pelo desempenho de cargos públicos; além disso, soldados e marinheiros passaram a receber salários. Com vistas a assegurar a participação democrática de todos os cidadãos na vida publica, todos os funcionários (magistrados e outros), a exceção dos estrátegos, eram escolhidos por sorteio. Nessa época, o poder executivo era exercido de fato pelos estratégos e, entre eles, se sobressaía a figura de Péricles”. (AQUINO, Rubim Santos Leão de. Op. Cit. p.200.).

As decisões tomadas na Eclésia, representavam a palavra final nos tratados, na economia, no ordenamento jurídico, nas obras públicas, na paz e na guerra, em suma, em todas as atividades administrativas. As assembléias eram cotidianas e todos tinham o direito de fazer uso da palavra. Assim, a oratória tornou-se indispensável para o convencimento das massas. Se a Ágora era o espaço geográfico do poder, nele imperava o Logos (a palavra). A democracia ateniense, dessa maneira, gerou os demagogos (“demos”: povo; “gogos”: condutor), líderes que buscavam persuadir e seduzir politicamente a população. Os demagogos tinham como mestres os sofistas, os primeiros professores pagos na história da humanidade. A sofística, escola filosófica nascida em Atenas, defendia o relativismo do conhecimento: a verdade é aquilo que é útil para tomada e manutenção do poder.

Protágoras, o maior dos sofistas, resume essa postura ao afirmar que “o homem é a medida de todas as coisas, das que são enquanto são e das que não são enquanto não são”. Esse pragmatismo, aparentemente nocivo ao saber filosófico, tem a virtude política de defender a sociedade democrática, na qual prevalece a pluralidade de opiniões. De fato, a crença numa verdade absoluta sempre traz consigo a proposta de um Estado autoritário que imponha essa verdade.

A democracia ateniense, calcada na ação de todos, impossibilitava a criação de estruturas partidárias elitistas e concentradoras da autoridade. Outro fato importante do regime democrático de Atenas era a inexistência de grandes quadros burocráticos: poucos eram os funcionários públicos, limitados a alguns escriturários. Dessa forma, impedia-se a burocratização da sociedade com seu inevitável tráfego de influências. Foi o próprio Péricles, governante do auge da democracia ateniense, quem melhor ressaltou as virtudes do sistema: “Nossa constituição é chamada de democracia porque o poder está nas mãos não de uma minoria, mas de todo o povo. Quando se trata de resolver questões privadas, todos são iguais perante a lei, quando se trata de colocar uma pessoa diante de outra em posição de responsabilidade pública, o que vale não é o fato de pertencer a determinada classe, mas a competência real que o homem possui”.

A cidadania na democracia ateniense


Foi nos marcos da democracia ateniense que se elaborou a primeira visão de cidadania da história humana. Assim, cidadania na democracia ateniense equivaleria aos direitos políticos do cidadão nos días atuais. O sentido da cidadania era substancialmente diferente daquele que a palavra adquriu na contemporaneidade porque não incluia nem direitos civis nem, tão pouco, direitos sociais.

Atenas é considerada o modelo de democracia do mundo grego clássico. Todavia, sua cidadania não era universal. Escravos, mulheres e estrangeiros não faziam parte do corpo de cidadãos. Só os individuos do sexo masculino, libres e maiores de dezoitos anos que cumprissem determinados ritos, eram conhecidos como cidadãos. Tão logo atingisse esse grau, o individuo “pode e, em principio deve, participar da vida política. Como o regime corresponde a uma democracia direta, todos os cidadãos são chamados a reunir-se periodicamente (cerca de 40 vezes por ano) no recinto da assembléia do povo para deliberar e votar as proprostas que emanam de um magistrado ou de um conselho restrito de cidadãos (o conselho dos quinhentos), escolhidos ao acaso entre os voluntarios e renovável todos os anos, ou ainda de um simples cidadão. Em teoría, portanto, qualquer cidadão pode ter assento na assembléia, propor leis e emendas às leis e, se tiver sorte, tornar-se temporariamente um responsável político na condição de bouleute (membro do Bulé – conselho dos 500) ou de Prítane (um bouleute em função permanente durante um décimo do ano) ou epistate dos Prítanes (presidente sorteado por 24 horas) ou ainda proedro (presidente) da Assembléia do povo (no século V). O sorteio é considerado uma espécie de tradução da escolha dos deuses e, nesse sentido, a igualdade de oportunidades é, em principio, total.

[…] Durante muito tempo, só aqueles que não precisam trabalhar para sobreviver concordam em perder dezenas de días de trabalho no ano para exercer seus direitos cívicos e, aliás, Aristóteles, ´a perfeição do cidadão só se encontra no homem libre desobrigado de tarefas indispensáveis`. Para tentar remediar essa forte abstenção dos cidadãos mais pobres, a democracia ateniense cria, a partir do início do século IV, uma indenização diária, o misthos, para compensar – e encorajar – os cidadãos que sacrificam uma parte de seu tempo ao cumprimento do deber cívico. […]”.

Analisando a cidadania na democracia ateniense, Guarinello comenta: “Em primeiro lugar, uma ressalva: a cidadania dizia respeito apenas aos cidadãos masculinos e excluía, de qualquer forma de participação política, as mulheres, os imigrantes e os escravos. Em contrapartida, no ámbito restrito dos cidadãos, representou uma experiência notável de participação direta no poder de todas as camadas sociais, independentemente da riqueza ou posição social. Criaram-se mecanismos de indenização pecuniária que facilitavam, aos mais pobres, o acesso a participação na vida comunitária, não apenas nas assembléias e tribunais, mas até mesmo nas festividades cívicas, como a assistência às apresentações teatrais. Os ricos, que se acomodaram como puderam ao sistema democrático, foram obrigados a contribuir com a comunidade de varias formas, construindo naves de guerra, financiando espetáculos e festas religiosas. Grande parte do sucesso da democracia ateniense deveu-se, sem dúvida, ao Império constrído após a guerra contra os persas, cujos beneficios, em tributos e terras cultiváveis, foram distribuídos para os mais pobres. Mas a democracia sobreviveu a derrocada do Império, em grande parte pela constituição, ao longo dos séculos V e IV a.C., de uma verdadeira cultura democrática em sua população”. (GUARINELLO, Norberto Luiz. Op. Cit. P.41).

PSS 3 - 2011 - SUBTEMA DIVERSIDADE POR DEFICIÊNCIA

Diversidade por deficiência – Apostila I


Introdução

Os estudos sobre os direitos das pessoas com deficiência não estão dissociados dos fatos históricos, reveladores que são do transcurso temporal das sociedades, seus modos de produção, estruturas sociais, formas de poder, manifestações espirituais, enfim, da produção cultural humana ao longo do tempo. Assim, antes de se fazer uma abordagem sobre a problemática das pessoas portadoras de deficiência nos dias atuais, o estágio atual da relação Exclusão/Inclusão das pessoas deficientes em um contexto de cidadania plena, faremos uma incursão histórica para melhor compreender esses indivíduos no cenário histórico de diversas civilizações. Na tentativa de compreender/conhecer quem é o deficiente, estudiosos do assunto analisaram como, historicamente, os indivíduos com deficiência têm sido considerados em diversas das formações culturais humanas, encontrando-se nessas analises uma diversidade de informações que reforçam uma tendência ainda longe de ser dissipada da sociedade atual, a predominância das atitudes de exclusão do meio social em relação às pessoas deficientes. “conforme se constata, ao longo desses vinte séculos de História, a deficiência foi tratada de forma mais ou menos excludente porque em torno delas se criaram marcas – estigmas – que definiram as atitudes do estigmatizado e do estigmatizador. Parece não haver sociedade, momento ou cultura, onde a pessoa com deficiência não tenha sido marcada pela exclusão; seja em maior ou menor grau, de uma forma ou de outra”. (SANTIAGO, Sandra Alves da Silva. Exclusão e deficiência: primeiras aproximações teóricas. In: Exclusão, inclusão e diversidade / Robert Jarry Richardson (Org.) / João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2009. P. 132).

Explicando conceitos

Para melhor esclarecimento dos leitores desse texto, gostaríamos, antes de tudo, explicitar que entendimento estamos adotando para a utilização de duas expressões que serão por demais repetidas nessa abordagem histórica sobre o tratamento dispensado as pessoas com deficiência. As referidas expressões são: exclusão e pessoa com deficiência.

Nosso tratamento dado ao tema teve como base a utilização do livro “Exclusão, inclusão e diversidade”, publicado recentemente pela Editora da UFPB. No referido livro, constam 03 artigos que procuram levantar, entre outros temas, uma reflexão acerca do tratamento dispensado as pessoas com deficiência ao longo da História humana. Mais precisamente no primeiro desses artigos, “Exclusão e deficiência: primeiras aproximações teóricas” (SANTIAGO, 2009), a autora faz uma importante consideração a respeito da utilização das expressões as quais nos referimos, consideração esta com a qual concordamos.

Assim, Sobre o uso do termo exclusão a autora nos esclarece que: “Nesta direção entendemos por exclusão a condição de impossibilidade ou incapacidade da pessoa com deficiência de exercer, em maior ou menor grau, algum ou vários dos direitos sociais que lhe outorga status de cidadania.” (SANTIAGO, 2009, p. 114). Em outros termos, utilizaremos a palavra exclusão para nos referirmos ao impedimento que, historicamente, vem sendo imposto às pessoas com deficiência para que as mesmas possam ser incluídas no meio social, no pleno gozo dos direitos pertinentes aos diversos grupos sociais, em cada época histórica.

A respeito da utilização do termo pessoa com deficiência, a autora nos mostra que mais do que uma expressão, o uso das palavras grifadas revelam uma opção para a abordagem do assunto: “Assim, é importante destacar que a expressão ´pessoa com deficiência` é relativamente nova no cenário acadêmico. Por muito tempo expressões como ´anormais`, ´alienados`, ´idiotas`, ´imbecis`, ´retardados`, ´excepcionais`, etc, foram amplamente aceitas e utilizadas sempre que se fazia referencia àqueles que portavam algum tipo de marca ou diferença corporal ou mental.” (SANTIAGO, 2009, p. 114). E acrescenta que “a adoção do termo pessoa com deficiência, indica um esforço teórico em evidenciar muito mais a pessoa – o ser – do que as marcas características ou sinais que ela possua. Consequentemente, o sujeito e sua integralidade são os elementos centrais do conceito e não a deficiência, ou menos ainda, a doença”. (SANTIAGO, 2009, p. 116).

Aspectos históricos envolvendo pessoas com deficiência

01. A pré-história

Não se têm indícios de como os primeiros grupos humanos na terra se comportavam em relação às pessoas com deficiência. Tudo indica que essas pessoas não sobreviviam ao ambiente hostil da época. Basta lembrar que não havia abrigo satisfatório para dias e noites de frio intenso e calor insuportável; não havia comida em abundância; não se plantava suficientemente para o sustento. A caça para a obtenção de alimentos e pele de animais para se aquecer e a coleta de frutos, folhas e raízes garantia o sustento das pessoas no paleolítico.

Há mais ou menos dez mil anos quando as condições físicas e de clima na Terra ficaram mais amenas, os grupos começaram a se organizar mais complexamente. Após um longo período de nomadismo, o homem paulatinamente, foi aprendendo a cultivar o solo, a domesticar e criar animais, não mais havendo a necessidade de se locomover para poder alimentar-se. Com a sedentarização e posterior crescimento demográfico, houve a necessidade do emprego de mão-de-obra para a agricultura e a pecuária. Para satisfazer suas necessidades, que em termos de acumular patrimônio aumentou com o advento de uma maior complexidade social, o homem passou a explorar o homem.

As tribos se formaram e com elas a preocupação em manter a segurança e a saúde dos integrantes do grupo para a sobrevivência. Os estudiosos concluem que a sobrevivência de uma pessoa com deficiência nos grupos primitivos de humanos era impossível porque o ambiente era muito desfavorável e porque essas pessoas representavam um fardo para o grupo. Só os mais fortes sobreviviam e era inclusive muito comum que certas tribos se desfizessem das crianças com deficiência.

02. A pessoa com deficiência no Egito Antigo

Por volta de 4000 anos a.C. é possível encontrar as chamadas grandes civilizações: sedentarizadas, com escrita desenvolvida e apresentando complexas características de organização produtiva, estrutura de poder político, hierarquização social e manifestações intelectuais.

Localizado no Nordeste da África, as margens do Nilo, o Egito possui registros que datam de períodos anteriores ao quarto milênio que antecede a era cristã. Os autores consensualmente afirmam que a presença humana em uma região desértica, situada entre os mares Mediterrâneo e Vermelho, só foi possível graças a um complexo processo de adaptação ao meio ambiente, mediante o aproveitamento dos recursos oferecidos pela presença do rio Nilo, suas vazantes e suas cheias.

Evidentemente, a cultura egípcia foi o resultado desse processo de adaptação ao meio. Contudo, o aprendizado que essa adaptação exigiu foi realizado num ambiente marcado por fenômenos naturais um tanto violentos, para os quais o homem praticamente não estava preparado, sendo a força física um notável aliado contra as intempéries naturais. Embora em ambiente hostil, esses homens que construíram o Egito souberam transformar, com seu trabalho, dificuldades em soluções e o aproveitamento das condições geográficas daquela região desértica nos revela isto. Todavia, “ao mesmo tempo, as mesmas condições geográficas podem ter sido responsáveis pela eliminação das pessoas com deficiência, pois as constantes enchentes provocadas pelo Nilo exigiam atitudes que envolviam rapidez e força para fugir da morte eminente. Certamente, a população que se situava as suas margens necessitava agir rapidamente e àquelas vitimas de alguma deficiência, especialmente de ordem física ou mental ficavam impossibilitadas de tomas tais providencias”. (SANTIAGO, 2009, p. 117).

Na analise da organização econômica da sociedade egípcia pode-se indicar que suas principais atividades, agricultura e pecuária, ao longo de sua história, além do comércio especificamente durante o novo Império, podem ter criado mecanismos para a exclusão da pessoa com deficiência. Para cultivar a terra, o povo egípcio se valia, além de seus conhecimentos sobre a região, da força física empregada mediante a submissão pelo Estado daqueles que eram despossuídos. A realização de grandes construções (pirâmides, diques, canais) também se constituíam em atividades destinadas as castas menos favorecidas. Desta forma, o individuo que possuísse qualquer tipo de deficiência/doença estava afastado do processo produtivo em razão de suas próprias limitações.

A estrutura social egípcia, como é de amplo conhecimento, tinha como base uma rígida hierarquia. O Faraó, situado no seu topo, tinha necessidade de um grupo próximo a ele para realizar as suas determinações entendidas e divulgadas como vontade dos deuses. Assim foi formada uma camada sacerdotal que se apresentava como guardiã dos templos e era monopolizadora de praticamente toda a produção do saber. “Além disso, estavam à frente dos cuidados com os doentes/deficientes e pela formação dos médicos. Diante disto, se a pessoa com deficiência pertencia a classes próximas dos faraós, tanto mais fácil serem viabilizados meios para sua sobrevivência.” (SANTIAGO, 2009, p. 118). Essa mesma estrutura social contava ainda com um pequeno grupo de pessoas formado pelos parentes do faraó, nobreza administradora das terras do Estado, elite militar e escribas. Esses grupos auxiliavam o faraó na administração do território e suas atividades: cobrar impostos, fiscalizar obras e acompanhar os trabalhos agrícolas. Neste caso, portar deficiências poderia representar um obstáculo à realização de certas atividades. Diversas evidências apontam ainda a existência de trabalhadores especializados – marceneiros, pintores, tecelões, ferreiros, escultores e ourives – que faziam uso de excelentes habilidades manuais onde “a falta de membros ou de visão constituía um problema grave”. (SANTIAGO, 2009, p. 119).

A cultura construída pelos egípcios e suas relações com as pessoas com deficiência também pode ser entendida a partir da religiosidade manifesta por esta civilização. “A crença egípcia que guiava todas as atividades da sociedade entendia que a deficiência ocorria como resultado de castigos divinos. Dessa forma, a pessoa deficiente era, em geral, vista como alguém marcado pelos deuses por algo errado que tenham realizado em vidas anteriores. (...) a doença seria causada por fatores naturais ou sobrenaturais; em geral a manifestação da vontade dos deuses.”. (SANTIAGO, 2009, p. 119). Haviam, portanto, duas certezas egípcias sobre a pessoa com deficiência: primeiro, ela era um doente, e segundo um individuo marcado pelos deuses por ter desobedecido as suas regras, seja no presente ou no passado.

Mesmo fortemente marcada pelo misticismo, a cultura egípcia procurou construir conhecimentos sobre o mundo, o homem e seus problemas. Nesse contexto é conhecido o destaque egípcio no que diz respeito às praticas da medicina. “Mesmo, sendo a doença/deficiência uma obra dos deuses, os homens egípcios entendiam que poderiam encontrar – por revelação daqueles – formas de curar ou intervir. Assim, a medicina dos tempos dos faraós é considerada hoje, bastante avançada para a época, pois combinava um grande conhecimento sobre os benefícios de recursos naturais como plantas e alimentos com crenças e religião.” (SANTIAGO, 2009, p. 120)

Foi mediante essas crenças que a cultura humana do Egito antigo também acumulou conhecimento no que diz respeito ao tratamento de certa doença/deficiência. “Uma das áreas de maior desenvolvimento foi a oftalmologia. Isso se deveu ao fato das doenças oculares serem muito freqüentes. Em especial a chamada ´cegueira do deserto`, hoje conhecida como tracoma, mal causado pela bactéria Chlamydia trachomatis. Uma das áreas de maior interesse dos egípcios foi a cegueira. Pesquisadores acreditam que esta preocupação egípcia se deve ao fato da grande incidência de casos na região, ao ponto daquele ser considerado mais tarde por Hesíodo como o ´país dos cegos`. Certamente, por isso, a mais antiga menção de doença de olhos que a humanidade tem registro está no ebers papyrus, um documento escrito por volta de 1553 – 1550 a.C. e descoberto em 1872 na necrópole de Tebas. O papiro trata de várias doenças dos olhos e serviu de referencia para outros povos, sendo fonte de investigação até hoje”. (SANTIAGO, 2009, p. 121)

A arte egípcia também possui seus registros sobre pessoas com deficiência. Algumas obras mostram a presença constante de pessoas portadoras de alguma deficiência entre os egípcios, revelando que certo grupo, provavelmente ligado aos faraós, não foi sacrificado ou abandonado a própria sorte. Dentre esses, menção especial se faz aos portadores de nanismo.

Especialistas revelam que os anões eram empregados em casas de altos funcionários, situação que lhes permitia honrarias e funerais dignos. A múmia de Talchos, da época Saíta (1.150 a 336 a.C.), em exposição no Museu do Cairo, traz indicações de que era uma pessoa importante. Já um papiro contendo ensinamentos morais no Antigo Egito, ressalta a necessidade de se respeitar as pessoas com nanismo e com outras deficiências - “Há ainda a existência de uma determinação do faraó Amenemope (ao redor do final do segundo milênio antes de Cristo) que diz: Não ironize o cego, nem ria do anão, nem bloqueie o caminho do aleijado; não aborreça um homem que ficou doente por causa de um Deus, nem faça escândalo quando ele erra.” (SANTIAGO, 2009, p. 122).

Existem menções artísticas a outras doenças. No museu de arte de Copenhague, na Dinamarca há uma estela da XIX dinastia, onde se vê um guardião de templo deficiente. O achado data de mais de 1000 anos a.C. Ela retrata um homem conhecido como Roma, ocupante de um cargo de grande responsabilidade em seus dias: porteiro de um dos templos de um dos deuses egípcios, que apresenta uma deficiência física muito evidente, certamente causada por poliomielite.

03. Civilizações clássicas: Grécia e Roma

Como vimos no caso egípcio, a estrutura das sociedades, desde os primórdios, incapacitou os deficientes, marginalizando-os e privando-os de liberdade. Estas pessoas, sem respeito, sem atendimento, sem direitos, sempre foram alvo de atitudes preconceituosas e ações impiedosas, exatamente porque se lhes nega a cidadania.

A idéia de cidadania surgiu na Grécia antiga como parte fundamental nos processos decisórios atinentes as cidades-estados. Nesse sentido, o ser cidadão compreendia a participação nas decisões a serem tomadas no tocante a vida das polis, o dedicar-se integralmente aos negócios públicos entendidos como meios construtores da felicidade para os cidadão. Embora haja certa semelhança entre o ser cidadão nas polis gregas e os direitos políticos da cidadania atual, a concepção de cidadania na antiguidade era bastante excludente. Basta lembrar que mulheres, crianças, pessoas com deficiência, estrangeiros e escravos não eram considerados cidadãos.

Entre 400 e 300 a.C., temos os grandes filósofos, ora reforçando ou criando estigmas, ora contribuindo para o entendimento das deficiências. Sócrates foi um dos primeiros a discutir as grandes questões éticas a respeito da vida humana, mas praticamente não faz referencia as deficiências. Hipocrates foi o primeiro a advogar causas físicas para as deficiências, rejeitando, assim, a idéia de intervenção divina como explicação para a ocorrência de deficiências, mas esteve longe de discutir os direitos das pessoas atingidas por elas.

Por outro lado, Platão, no livro A República, e Aristóteles, no livro A Política, trataram do planejamento das cidades gregas indicando as pessoas nascidas “disformes” para a eliminação. A eliminação era por exposição, ou abandono ou, ainda, atiradas do aprisco de uma cadeia de montanhas chamada Tahgetos, na Grécia.

A cultura grega foi uma das que mais contribuiu para o panorama da discriminação das pessoas com deficiência. Segundo Blackburn (2006), Platão, um dos mais notáveis filósofos gregos, idealizava uma sociedade perfeita pregando a união dos melhores indivíduos, ou seja, os indivíduos considerados perfeitos. Defendia ainda que as crianças que possuíssem alguma enfermidade deveriam ser levadas a um lugar desconhecido e secreto e os corpos que possuíssem alguma anormalidade não deveriam continuar com sofrimento, sendo então, largados a própria sorte até o encontro com a morte.

A República, Livro IV, 460 a.C – “Pegarão então os filhos dos homens superiores, e levá-los-ão para o aprisco, para junto de amas que moram à parte num bairro da cidade; os dos homens inferiores, e qualquer dos outros que seja disforme, escondê-los-ão num lugar interdito e oculto, como convém”. (GUGEL: 2007, p. 63).

Podemos ainda, encontrar relatos semelhantes às idéias de Platão nas histórias das cidades de Atenas e Esparta. De acordo com Pastore (2000) para o povo guerreiro, as crianças eram propriedade do Estado. Em Esparta, os meninos a partir dos 7 aos 37 anos, deveriam estar a serviço do exército. Devido a isso havia uma exigência de pessoas saudáveis, capazes de defender o Estado nas constantes batalhas. Aqueles que tivessem algum tipo de deficiência não estariam aptos para o exercício da guerra. Ao nascer, os bebês eram levados a uma espécie de comissão oficial formada por anciãos de reconhecida autoridade. Conforme as leis: Se lhes parecia feia, disforme e franzina, como refere Plutarco, esses mesmos anciãos, em nome do Estado e da linhagem das famílias que representavam, ficavam com a criança. Tomavam-na logo a seguir e a levavam a um local chamado Ápothetai, que significa depósito. Tratava-se de um abismo situado na cadeia de montanhas Tahgetos, perto de Esparta, onde a criança era lançada e encontraria a morte, pois, tinham a opinião de que não era bom nem para a criança nem para a república que ela vivesse, visto como desde o nascimento não se mostrava bem constituída para ser forte, sã e rija durante toda a vida (Silva, 1986, p. 122).

Em Atenas, considerada por muitos como o berço da civilização ocidental, o trato para com as pessoas com deficiência não era diferente daquele tratamento dado em Esparta. No caso do nascimento de um bebê com alguma deficiência, era o próprio pai quem deveria matá-lo. O extermínio de crianças com deficiências era tão comum que, mesmo Aristóteles, famoso por sua defesa das instituições democráticas atenienses, na obra A POLÍTICA afirmava: “Quanto a rejeitar ou criar os recém-nascidos, terá de haver uma lei segundo a qual nenhuma criança disforme será criada. Com vistas a evitar o excesso de crianças, se os costumes das cidades impedem o abandono de recém-nascidos deve haver um dispositivo legal limitando a procriação. Se alguém tiver um filho contrariamente a tal dispositivo, deverá ser provocado o aborto antes que comecem as sensações e a vida”. (a legalidade ou ilegalidade do aborto será definida pelo critério de haver ou não sensação e vida). (GUGEL: 2007, p. 63).

Contudo, a história da civilização grega também nos mostra exemplo de pessoa com necessidades especiais que conseguiu vencer a ideia de mera exclusão. O caso mais famoso é o do poeta Homero que, pelos relatos, era cego e teria vivido em época anterior ao século VII a.C.. Escreveu os belos poemas Ilíada e Odisséia. Em Ilíada Homero criou o personagem Hefesto, o ferreiro divino. Seguindo os parâmetros da mitologia, Hefesto ao nascer é rejeitado pela mãe Hera por ter uma das pernas atrofiada. Zeus em sua ira o atira fora do Olimpo. Em Lemnos, na terra entre os homens, Hefesto compensou sua deficiência física e mostrou suas altas habilidades em metalurgia e artes manuais. Casou-se com Afrodite e Atena.

O caso romano

Em Roma houve dois momentos distintos. O primeiro refere-se ao período que antecede o segundo século antes de Cristo. Até então o exército romano era formado por pequenos agricultores, que iam à guerra para defenderem suas propriedades e adquirir novas terras. Durante este período, o tratamento dado às pessoas com deficiências era praticamente o mesmo que aquele dado na Grécia. “A antiga lei das Doze Tábuas, do início da república até a metade do século V a.C., permite entre outras coisas, que o pai mate os filhos anormais” (Manacorda 1997, p.74).

No segundo momento a partir do século I d.C. o exército romano foi profissionalizado, assim, os reis e os proprietários não necessitavam mais ir à guerra. Passou-se então a existir certa tolerância com as pessoas que nasciam com alguma deficiência. Entre os ricos e nobres alguns chegaram a ser imperadores, tais como: Tiberius Claudius César Augustus Germanicus, conhecido como Imperador Cláudio I; Servius Sulpicius Galba; Aulus Vitelius. Já entre os pobres, a realidade era bem diferente, “existia em Roma um mercado especial para compra e venda de homens sem pernas ou braços, de três olhos, gigantes, anões, hermafroditas” (Durant in Silva, 1986, p. 130).

As condições de existência das pessoas no período escravista estavam ligadas à forma de produzir seus meios de vida, à qual exigia um biotipo que lhes permitissem executar as tarefas que eram colocadas. Desta forma, àqueles que tinham a desventura de nascer com alguma deficiência, não restava outra sorte do que ser eliminado ou abandonado. O modo de produção escravista, com o passar do tempo, foi entrando em colapso. Para o proprietário dos meios de produção manter em sua propriedade um grupo de escravos passou a não ser lucrativo, pois o custo da manutenção deste contingente fazia-se muito elevado. Uma nova forma de produção precisava ser implantada. Assim os escravos foram sendo substituídos pelos servos. A esses era dada uma gleba onde ele e sua família iria trabalhar para o seu sustento e para pagar a parte que era devida ao senhor feudal, em geral, quatro quintos de toda a produção.

O cristianismo e a deficiência

Foi no contexto do Império Romano que surgiu o cristianismo. A nova doutrina voltava-se para a caridade e o amor entre as pessoas. As classes menos favorecidas sentiram-se acolhidas com essa nova visão. O cristianismo combateu, dentre outras práticas, a eliminação dos filhos nascidos com deficiência. Os cristãos foram perseguidos, porém alteraram as concepções romanas a partir do Século IV, quando tornaram-se a única religião permitida no Império. Nesse período é que surgiram os primeiros hospitais de caridade que abrigavam indigentes e pessoas com deficiências.

Há passagens no Pentateuco, livro oriundo do judaísmo, do qual derivaria o cristianismo, segundo as Leis relativas aos Sacerdotes, em que a deficiência tinha significado religioso:

“O Senhor disse a Moisés: Nenhum dos teus descendentes, de geração em geração, se sofrer de alguma deformidade poderá oferecer pão do seu Deus. Porque quem tiver alguma deformidade não poderá ser admitido: um cego, um coxo, um aleijado de pé ou de mão. Homem algum de raça do sacerdote de Aarão, que tiver alguma deformidade, se apresentará para oferecer sacrifícios ao Senhor. Poderá comer o pão do seu Deus proveniente das ofertas santíssimas ou das ofertas santas, mas não se aproximará do véu ou do altar, pois sofre de alguma deformidade e não deve profanar os meus santuários”. (Levítico, 2: 21-23).

O povo pecador era comparado com o povo deficiente, e a deficiência entre os hebreus era vista como castigo dos pecados, o que demandava a exclusão destes dos seus entes queridos e de sua moradia. A sobrevivência só poderia ocorrer longe dos sadios, dos justos, dos retos e dos bons. O retorno à sua comunidade só ocorria através de milagres.

Foi no cristianismo primitivo que se rompeu com a concepção judaica da deformidade por punição divina, permanecendo o milagre como meio de reintegração social: “Naquele tempo, Jesus encontrou no seu caminho um cego de nascença. Os discípulos perguntaram-Lhe: Mestre, quem é que pecou para ele nascer cego? Ele ou os seus pais?” Jesus respondeu-lhes: “Isso não tem nada que ver com os pecados dele ou dos pais; mas aconteceu assim para se manifestarem nele as obras de Deus”. [...] Dito isto, cuspiu em terra, fez com a saliva um pouco de lodo e ungiu os olhos do cego. Depois disse-lhe: ´Vai lavar-te à piscina de Siloé`; Ele foi, lavou-se e voltou a enxergar ...”.

PARA APROFUNDAR TEMÁTICAS SOBRE DIVERSIDADE CULTURAL:

RICHARDSON, Roberto Jarry (Org.). Exclusão, inclusão e diversidade. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2009.