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quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Desafios da cidadania no Brasil contemporâneo: Uma introdução

Desafios da cidadania no Brasil contemporâneo
                O conceito moderno de cidadania foi uma elaboração do inglês T. H. Marschall, apresentado pela primeira vez na conferência intitulada “cidadania e classes sociais”, em fins da década de 1940.
                Marschall (1967) define o conceito de cidadania a partir de três pilares essenciais: os direitos civis, os direitos políticos e os direitos sociais. Para ele, os direitos civis nos asseguram as condições fundamentais para nossa vida em sociedade: vida, liberdade, propriedade e direito a igualdade perante a lei. Os direitos políticos nos garantem a participação nas decisões a serem tomadas acerca dos destinos do corpo social a qual pertencemos e os direitos sociais nos proporcionam o acesso às riquezas que são produzidas socialmente através da garantia de educação, saúde, trabalho, segurança, lazer, patrimônio cultural e assim por diante. Embora tenhamos a concepção marschalliana como norte para este texto, é preciso atentar para algumas especificidades que o nosso tema requer.
A primeira delas é a de que T. H. Marschall, em sua definição, elaborou um conceito com base em um estudo de caso sobre o desenvolvimento histórico da cidadania inglesa, ao passo que estamos nos debruçando sobre o caso brasileiro e, mais especificamente, querendo propor desafios para que a nossa sociedade possa realizar a construção de uma cidadania para todos. Se para Marschall, a construção do moderno conceito de cidadania se deu numa sequência que encadeia direitos civis (século XVIII), direitos políticos (século XIX) e direitos sociais (século XX), é preciso ter em mente que este encadeamento não pode ser transplantado mecanicamente aos estudos sobre cidadania aplicados em outras temporalidades e fora da territorialidade inglesa. Este é precisamente o nosso caso. Para o historiador José Murilo de Carvalho (2010),
“O surgimento sequencial dos direitos sugere que a própria ideia de direitos, e, portanto, a própria cidadania, é um fenômeno histórico. O ponto de chegada, o ideal da cidadania plena, pode ser semelhante, pelo menos na tradição ocidental na qual nos movemos. Mas os caminhos são distintos e nem sempre seguem linha reta. Pode haver também desvios e retrocessos, não previstos por Marschall. O percurso inglês foi apenas um entre outros. A França, a Alemanha, os Estados Unidos, cada país seguiu o seu próprio caminho. O Brasil não é exceção. Aqui não se aplica o modelo inglês. Ele nos serve apenas para comparar por contraste. Para dizer logo, houve no Brasil pelo menos duas diferenças importantes. A primeira refere-se a maior ênfase em um dos direitos, o social, em relação aos outros. A segunda refere-se a alteração da sequência em que os direitos foram adquiridos: entre nós o social precedeu os outros. Como havia lógica na sequência inglesa, uma alteração dela afeta a natureza da cidadania.”[1]
                Consideramos, portanto, assim como Carvalho, o caso brasileiro como uma construção particular da cidadania. Nessa construção, além da alteração sequencial e de ênfase já descritas, encontramos possibilidades de existência de alguns direitos sem a presença de outros nos mais variados momentos de nossa história, ou seja, predomina em nossa história a existência de uma cidadania incompleta.
Como origem, comum a algumas temporalidades e territorialidades, há a era da ausência de direitos, que pode ser identificada com o período colonial brasileiro. Essa foi uma época que legou obstáculos imensos para a construção de cidadão pleno em nosso país. Vivemos em uma formação social, econômica, política e cultural que ainda curva-se diante do enorme peso de nosso passado – patrimonialismo, supremacia do poder privado, preconceitos diversos, direitos sociais como privilégio de poucos, grande propriedade fundiária, influência do poder econômico nos processos políticos, ainda são graves problemas, para citar apenas os que vemos como principais, que podem ser definidos como verdadeiros “muros de discórdia” na construção de uma plena cidadania brasileira.
Após 07 de setembro de 1822, proclamada a independência e outorgada a constituição de 1824, adentramos a era dos direitos restritos por critérios que se originam na renda, passando pela religião e chegando ao gênero, etnia e status social. O período imperial da História brasileira, cujos pilares, excetuando-se a escravidão, foram mantidos na primeira fase da República, foi a época em que direitos civis, políticos e sociais só existiram na sua integralidade para a elite aristocrática que administrava o Império e que tornou-se mais dominante ainda, porque apoderou-se completamente do aparelho de Estado, na República Velha, pelo menos até 1930.
A ascensão de Vargas ao poder em 1930 e todo o movimento estrutural que a precedeu, trouxeram a tona novas forças sociais. A entrada em cena da classe média e dos trabalhadores, sobretudo o operariado sindicalizado de algumas cidades, chamou a atenção do governo para as suas reivindicações históricas. O período que se estende de 1930 a 1945, salvo o interregno que vai de 34 a 37, foi época de exceção. Nela, direitos políticos e civis foram suprimidos e direitos sociais foram assegurados por lei (CARVALHO, 2010). Começava ai um novo problema: a ascensão do Estado como regulador na concessão de direitos, tomando um lugar que seria do próprio cidadão.
Após a derrubada de Vargas, foram convocadas eleições presidenciais e legislativas para dezembro de 1945, iniciando nova fase marcada pela vigência de princípios constitucionais liberais. Na constituição de 1946 foram assegurados os direitos sociais obtidos no período varguista, concedidos direitos políticos (excetuando-se analfabetos, Cabos e soldados) e direitos civis (com exceção do direito de greve que não foi garantido na sua totalidade). Até 1964 a influência de Vargas continuaria imensa. O período conhecido como época do Estado liberal populista (1945-64) intensificou a participação dos trabalhadores na cena política, mas teve como agravante a permanência da mediação do Estado como regulador do acesso a direitos.
O golpe militar ensejado em 31 de Março de 1964 deu origem a novo período de ruptura com os ideais liberais e, sobretudo, com a democracia. Saímos de um Estado de direitos restritos (o liberalismo vigente na constituição de 1946) para um Estado militar que suprimiu direitos políticos, restringiu direitos civis e concedeu alguns direitos sociais (universalização da previdência social, por exemplo), mesmo como forma de legitimação de uma ditadura. Temos ai um novo momento de vigência de uma eficiente máquina repressiva associada à concessão de direitos reivindicados pela massa de excluídos. Novamente o Estado aparece como mediador todo poderoso dos direitos de cidadania, mas, desta vez, a sociedade civil retomaria parte de suas premissas cidadãs no período da chamada abertura lenta, gradual e segura (1974-85) conseguindo reconquistar direitos políticos e civis e intensificando a luta por direitos sociais.
A eleição de Tancredo Neves pelo colégio eleitoral em 1984, o trágico desfecho de sua enfermidade e a posse de José Sarney como Presidente da república em 1985, inauguraram o período da chamada Nova República.
A nova república e seu projeto democratizante começara em clima de otimismo, embalada pelo entusiasmo das grandes manifestações cívicas em favor de eleições diretas. O clima permaneceu em 1986 para formar a Assembléia Nacional Constituinte, a quarta da república, que culminou com a promulgação da constituição de 1988, onde a preocupação central foi a garantia dos direitos do cidadão. A constituição de 1988 universalizou o direito de voto, ampliou o direito de organização partidária, assegurou o direito de greve, livre manifestação e organização. Contudo, mesmo sendo chamada de “constituição cidadã”, a carta por si só não foi capaz de impulsionar o acesso pleno a cidadania para o conjunto da população.
O projeto democratizante dos anos de 1980 considerava que o restabelecimento dos direitos políticos poderia criar as condições para a estabilização da economia e uma distribuição mais igualitária da renda. Contudo, mesmo com o governo da nova república assegurando algumas conquistas sociais, esse desejo verificou-se inócuo. De 1985 a 1994 o que se viu foi uma serie de direitos tolhidos pela fragilidade dos nossos fundamentos econômicos e pelo descaso com políticas efetivamente distributivas da renda. Essa foi uma situação que gerou uma visão do Estado brasileiro como organismo ineficiente, incapaz de encaminhar soluções para nossos problemas históricos.
Nos anos de 1994 a 2002 viveríamos o reverso da moeda. Neles, o desgaste Estado “todo poderoso” impulsionou o surgimento de uma ideologia anti-Estado, consubstanciada em uma expressão própria do neoliberalismo – “o desmonte da Era Vargas”. Essa ideologia forjou a pratica de um projeto político onde o Estado se ausentou dos direitos sociais na mesma medida em que a sociedade consolidou seus direitos civis e políticos. O mercado passou a ser o grande ícone: estabilidade econômica, privatizações, metas de inflação, superávit primário e política cambial assumiram o norte das preocupações. Nesse contexto, os direitos sociais caminharam para trás. Dessa forma, em um contexto marcado pela ampliação dos direitos políticos, em nome de uma visão neoliberalizante, desestatizante, o papel econômico e social do Estado foi relegado a último plano e novamente fez-se o divórcio entre os direitos civis, políticos e sociais. Os fundamentos macro-econômicos da nossa economia foram corrigidos sob o preço de direitos básico como o direito ao trabalho e a renda. Isso levaria o historiador José Murilo de Carvalho a afirmar, na passagem do século XX para o século XXI, que
“A escandalosa desigualdade que concentra nas mãos de poucos a riqueza nacional tem como consequência níveis dolorosos de pobreza e miséria. Tomando-se a renda de 70 dólares – que a organização mundial de saúde (OMS) considera ser o mínimo necessário para a sobrevivência – como a linha divisória da pobreza, o Brasil tinha, em 1997, 54% de pobres. A porcentagem correspondia a 85 milhões de pessoas, numa população total de 160 milhões. No Nordeste, a porcentagem subia para 80%. A persistência da desigualdade é apenas em parte explicada pelo baixo crescimento econômico do país nos últimos 20 anos. Mesmo durante o período de alto crescimento da década de 1970 ela não se reduziu. Crescendo ou não o país permanece desigual. O efeito positivo da distribuição de renda trazido pelo fim da inflação teve efeito passageiro. A crise cambial de 1999 e a conseqüente redução do índice de crescimento econômico eliminaram as vantagens conseguidas no inicio”.[2]    
A ausência do equilíbrio entre os direitos civis, políticos e sociais, as analises virtualmente equivocadas sobre o papel do Estado em nossa sociedade e a transposição de modelos aplicados sem senso critico em nossa territorialidade foram vilões no atraso de nosso caminho em direção a cidadania plena. Resolver esses problemas é nosso maior desafio.      
 


[1] - CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil – o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 11-12.
[2] - CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil – o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 208-209.