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quarta-feira, 28 de julho de 2010

Os movimentos emancipacionistas e independência do Brasil: Cidadania, direitos civis e direitos políticos.

Os Movimentos Emancipacionistas

A partir de 1760 a situação internacional passou a estimular definitivamente o fim do colonialismo. Além da Inglaterra, onde a revolução industrial exigia a redefinição das relações econômicas internacionais, em outras áreas do mundo, as transformações ocorridas no passo da era das revoluções iam de encontro aos anseios de liberdade já presentes na colônia. Nas treze colônias inglesas da América do norte a independência conquistada definitivamente em 1783 além de dar validade prática aos ideais iluministas, se constituía no maior estimulo a outros movimentos de libertação colonial (alguns bastante radicais como a independência do Haiti, protagonizada por escravos). Na Europa, a propagação dos ideais iluministas contribuía para dar maior alcance aos princípios de igualdade civil e liberdade política. Com isso, o centro nevrálgico do absolutismo era contestado o que foi decisivo para o questionamento ao seu principal elemento de sustentação: a política econômica mercantilista e os monopólios coloniais.

Características principais:

• Contestavam a dominação colonial como um todo: exploração econômica e opressão política.

• Caráter emancipacionista: Lutam pela separação em relação a metrópole e expressam preocupações com a unidade nacional.

• Expressaram a consciência da elite colonial de que seus objetivos só seriam alcançados com a definitiva separação em relação a Portugal.

REBELIÕES EMANCIPACIONISTAS: QUADRO SINÓPTICO

Analisando os movimentos emancipacionistas do século XVIII e descortinando os caminhos da emancipação política, a historiadora Emília Viotti da Costa afirmou: “Para o povo composto de negros e mestiços, a revolução da independência configurava-se como uma luta contra os brancos e seus privilégios. Para os despossuídos a revolução significava a eliminação das barreiras de cor, na realização da igualdade econômica e social, na subversão da ordem. Para os representantes das categorias superiores da sociedade, fazendeiros ou comerciantes, a condição necessária da revolução, no entanto, era a manutenção da ordem e a garantia de seus privilégios. Dessa forma, o movimento que aglutinava elementos pertencentes a diferentes estratos da sociedade representava aspirações até mesmo contraditórias. As formulas abstratas constantes dos programas dos revolucionários ocultavam os diferentes sentidos que cada grupo os atribuía. Depois da independência, as formulas amplas e universalizantes do liberalismo retórico foram definidas nos seus termos concretos, ficando evidentes os seus limites. A partir de então ficaria claro para quem e por quem tinha sido o pais feito independente. Para as elites que tiveram a iniciativa e o controle do movimento, liberalismo significava apenas a liquidação dos laços coloniais. Não pretendiam reformar a estrutura de produção e a estrutura da sociedade. Por isso a escravidão seria mantida, assim como a economia de exportação. Por isso o movimento de independência seria menos antimonárquico do que anticolonial, menos nacionalista do que antimetropolitano. Por isso também a idéia de separação completa de Portugal só se configurou claramente quando se revelou impossível manter a dualidade das coroas e, ao mesmo tempo, preservar a liberdade de comercio”. (DA COSTA, Emília Viotti. Da Monarquia a República – Momentos decisivos. São Paulo: Brasiliense, 1977, P. 33).
 
O período joanino e a independência do Brasil (1808-1822).

A Europa no início do século XIX – As guerras napoleônicas

No início do século XIX, a Europa vivia o pleno estabelecimento do capitalismo industrial fato que desencadeava tensões e conflitos no continente. A Inglaterra, maior potencia industrial e a França, em plena era napoleônica, seriam os principiais protagonizadores das guerras européias do inicio do século XIX, as quais teriam repercussões sobre os rumos do Brasil.

A situação de Portugal

O tratado de Methuen, 1703, havia aberto o mercado português para a entrada de manufaturados ingleses em troca da exportação do vinho lusitano. Isso assegurou aos ingleses a hegemonia econômica e política sobre os portugueses.

Em 1806, em pleno desenvolvimento da expansão territorial, Napoleão Bonaparte decretou o bloqueio continental, proibindo os países europeus de comerciarem com os ingleses. Objetivava com isso sufocar economicamente à Inglaterra, já que não havia realizado a sua conquista no plano militar. Em meio a esse conjunto de disputas, a situação de Portugal complicava-se. De um lado a França exigia o fechamento dos portos portugueses as mercadorias inglesas, de outro a Inglaterra pressionava os portugueses pela assinatura de um acordo secreto que estabelecia:

• A transferência da administração portuguesa para o Brasil.

• A entrega da esquadra portuguesa aos britânicos.

• A entrega da ilha da Madeira, tradicional ponto estratégico africano, aos ingleses.

• A concessão de um porto livre, Santa Catarina, aos ingleses.

• A assinatura de novos tratados comerciais com os ingleses, logo após a transferência da corte portuguesa para o Brasil.

Em 1807, França e Espanha assinaram o tratado de Fontainebleau, que permitia a invasão de Portugal pelos franceses e estabelecia a divisão das colônias portuguesas entre França e Espanha, ao mesmo tempo em que os portugueses ratificaram a sua convenção com os ingleses.

Em 1808 consolidou-se a situação. As tropas comandadas pelo General Junot invadiram o norte de Portugal e a corte entrou em pânico. Em toque de fuga, cerca de 15.000 portugueses embarcaram para o Brasil. Dois dias depois, tropas francesas entraram em Lisboa e consolidaram a ocupação. Com a fuga da corte portuguesa os grandes vencedores foram os ingleses, agora, alçados a posição de detentores do mercado brasileiro.

A revolução liberal do Porto

Com a expulsão dos franceses, após a derrota de Bonaparte, Portugal passou a ser dirigido por ingleses, sob total tirania. Em 1820, eclodiu um movimento revolucionário na cidade do Porto, cujas reivindicações eram:

• Retorno imediato da família real;

• Fim do Estado absolutista;

• Juramento pelo monarca de uma constituição;

• Fim da inversão brasileira e retorno a uma situação de colônia.

Ameaçado de perder o trono real, em 1821, D.João VI viu-se obrigado a retornar a Portugal, mas, contrariando a idéia de que o rei era pouco inteligente, ele deixou aqui seu filho Pedro, nomeado regente do Brasil, para que este conduzisse o processo de independência que, a esta altura, já era irreversível.

A situação política e econômica do Brasil se agravou. D.João VI partiu esvaziando os cofres brasileiros, fazendo aumentar as hostilidades entre brasileiros e portugueses. O parlamento português, por sua vez, contra o protesto dos Deputados brasileiros, aprovava uma serie de medidas que determinavam a recolonização do Brasil.

O processo de independência

As pressões internas se acumulavam: havia um clima de conspiração e de apoio às revoltas emancipacionistas – as elites temiam uma revolução popular, sobretudo um levante de escravos e negros libertos e, principalmente e aristocracia, temia o retorno à situação de colônia porque isso significava o fim da liberdade comercial.

O contexto internacional também era favorável a uma ruptura das instituições coloniais. A nova doutrina econômica, o liberalismo, condenava as praticas intervencionistas do mercantilismo e defendia o fim do pacto colonial e a liberdade de comercio. A Inglaterra tinha interesse direto no desfecho da situação porque desejava continuar tendo acesso ao mercado brasileiro.

Pelos interesses que estavam em jogo, a independência já era uma questão de tempo e, agora, tratava-se de não perder o controle da situação. Assim, a elite latifundiária, o regente e seus aliados mais próximos e os próprios representantes dos capitais ingleses se aliaram para conduzir o processo de independência.

Em abril de 1821, teve inicio a negociação para definir as bases em que se organizaria o Estado brasileiro. Participaram desse acordo os portugueses que eram favoráveis a independência, representantes das camadas médias da sociedade, membros da aristocracia rural, o futuro e imperador e até negociantes ingleses.

Do outro lado, as cortes de Lisboa exigiam o retorno de D. Pedro a Portugal. Ao decidir, no dia 9 de janeiro de 1822, que ficaria, o regente deixou claro que havia optado pelo rompimento com Portugal. A parcela da elite que ainda se encontrava indecisa passa a apoiar a independência, desde que a mudança política não alterasse profundamente a estrutura socioeconômica brasileira.

As classes ricas, portugueses e brasileiros, temiam a instalação de uma republica que poderia significar a participação das demais classes nas decisões do poder, por isso defenderam, na sua maioria, a formula da monarquia constitucional sob o comando de D.Pedro, que era o herdeiro do trono português.

Em maio de 1822 D. Pedro institui o Cumpra-se (as leis portuguesas só teriam validade no Brasil com a anuência do regente), em julho foi convocada à realização de uma assembléia nacional constituinte. Em Agosto foi assinado um manifesto dirigido “as nações amigas”, anunciando uma independência que manteria o Brasil como “reino irmão de Portugal”. A elite portuguesa que vivia no Brasil tinha assegurado sua permanência sem riscos a sua vida e ao seu patrimônio; a elite agrária brasileira tinha garantido a liberdade de comercio conquistada em 1808, além da manutenção da concentração de terras e da escravidão. Os representantes do capitalismo inglês continuariam a ter acesso privilegiado ao mercado brasileiro. Para o restante da sociedade nada mudou.

O processo nos mostra que o acontecimento de sete de setembro de 1822 foi bastante irrelevante, uma vez que a independência já estava definida em nome das classes proprietárias.

Segundo a historiadora Emília Viotti da Costa, “A emancipação política realizada pelas categorias dominantes interessadas em assegurar a preservação da ordem estabelecida, cujo único objetivo era romper o sistema colonial no que ele significava de restrição a liberdade de comercio e a autonomia administrativa, não ultrapassaria seus próprios limites. A ordem econômica seria preservada, a escravidão mantida. A nação independente continuaria subordinada a economia colonial, passando do domínio português a tutela britânica. A fachada liberal construída pela elite europeizada ocultava a miséria e a escravidão da maioria dos habitantes do país. Conquistar a emancipação definitiva da nação, ampliar o significado dos princípios constitucionais seria tarefa relegada aos pósteres”. (Da Costa, Emília Viotti. Op. Cit. P. 54).

Na Paraíba, alguns eventos históricos marcaram a transição para a ordem imperial:

• Em junho de 1821 foram juradas as bases da constituição portuguesa e são eleitos os Deputados paraibanos às cortes.

• Entre este último período e o sete de Setembro de 1822, a Paraíba escolhe sua própria junta governativa e sucedem-se confrontos entre portugueses e brasileiros. A junta governativa declara-se fiel a D. Pedro e se pronuncia pela autonomia e o regime constitucional. São eleitos os Deputados à Assembléia constituinte convocada para o Rio de Janeiro e, finalmente, procede-se a aclamação de D. Pedro como imperador da nova nação.

• Apesar do juramento de fidelidade ao Imperador, permaneceram suspeitas sobre uma possível recolonização. Com a restauração do absolutismo em Portugal, aprofunda-se um clima político inquietante. A dissolução da Assembléia constituinte por D. Pedro I em 1823 e a outorga de uma constituição em 1824, reacenderiam o facho de revolta que desembocaria na adesão da Paraíba ao movimento da Confederação do Equador. Antes, porém, o duelo travado por forças constitucionalistas e absolutistas durante a assembléia de 1823 constitui capítulo importante deste momento histórico.

TEXTO DE APROFUNDAMENTO

CIDADANIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA NA ÉPOCA DA INDEPENDÊNCIA DO BRASIL

LÚCIA MARIA BASTOS P . NEVES (Departamento de História da UERJ)

“Sem dúvida, nesse momento histórico (1820/22), seria um anacronismo atribuir à idéia de opinião pública a concepção de uma pluralidade de indivíduos que se exprimem em termos de aprovação ou sustentação de uma ação, servindo de referencial a um projeto político definido, com o poder de alterar os rumos dos acontecimentos. Apesar disso, entre 1821 e 1822, ela não podia ser ignorada. Como informava o redator do Macaco Brasileiro, o príncipe D. Pedro conhecia e buscava “este termômetro”, percebendo que o idolatravam pelo “calor e energia com que soube merecer o título de Perpétuo Defensor do Brasil. De acordo com a utopia das Luzes, todo cidadão – qualidade inseparável de todo o homem, que vem a este mundo – devia ter acesso ao saber político para, uma vez instruído, poder representar adequadamente o seu papel de membro ativo da comunidade política, fosse como representante da nação, fosse como eleitor, recaindo sobre si a responsabilidade pela escolha dos membros do Poder Legislativo. Com esse espírito, tanto as primeiras eleições para os deputados brasileiros às Cortes de Lisboa quanto aquelas para a Assembléia Constituinte brasileira, embora utilizassem um método indireto, não estabeleciam censo algum, podendo ser votante todo cidadão com mais de 25 anos. Nessas condições, era a conclusão lógica, todo cidadão precisava adquirir conhecimento para bem servir à Nação. Assim sendo, o voto, direito que cada cidadão exercia individualmente, adquiriu uma importância fundamental que pode ser aquilatada pelo testemunho do compromissário da freguesia da Candelária do Rio de Janeiro, o bacharel Basílio Ferreira Goulart, ao descrever as eleições realizadas em abril de 1821, nessa cidade: “Nós não temos outra arma, senão o nosso voto: isto é, com que defenderemos nossos direitos, nossos foros pelos nossos representantes”. Num mundo que as desconhecia, as eleições revestiram-se, assim, de um significado extraordinário, absorvendo grande parte do simbolismo dos valores do homem liberal.

Apesar de tudo isso, a própria organização social no Brasil, dominada pela escravidão, acabava por restringir a possibilidade de informar as camadas mais baixas da população e, sobretudo, de dotá-la de meios para agir em função das novas perspectivas fornecidas por esses escritos. Na realidade, o povo que participou das manifestações em prol da nova ordem constitucional, embora constituído por diversas categorias – como funcionários, pequenos comerciantes, artesãos, caixeiros e soldados rasos –, não admitia os cativos, que formavam quase um terço da população, e tendia a excluir, a não ser como massa de manobra de interesses originados em outros planos, aqueles situados nas fímbrias da sociedade. O redator do jornal A Malagueta, em seu primeiro número, reconhecia que seu objetivo era o de provocar a análise crítica e justa de todos os cidadãos, isto é, “proprietários, gentes de guerra, diplomatas, legistas, comerciantes, lavradores, artistas, e de todos os que aqui compõem a grande família de homens livres”. Em 1823, o mesmo redator distinguia “três castas de cidadãos e de hierarquias”. Aos membros da família imperial e da aristocracia dos homens brancos atribuía um papel de liderança, mas reconhecia que também os homens libertos de cor eram admissíveis ao civismo. Os escravos, porém, constituíam um “Terceiro Estado”, sem direito algum. Dessa forma, ainda que houvesse a preocupação de instruir o povo nas novas práticas políticas, com o intuito de didaticamente transformá-lo em um conjunto de cidadãos, eram as elites que constituíam o público real desses jornais e folhetos e foi entre suas diversas facções que se jogaram os destinos da independência.

A consciência, porém, desse obstáculo interposto pela escravidão ao progresso da civilização, com que sonhavam os liberais, não esteve de todo ausente das preocupações da elite. Já em 1821, José Bonifácio de Andrade e Silva ao redigir, em sua essência, as Lembranças e apontamentos do governo provisório de São Paulo para os seus deputados, embarcados para o Congresso de Lisboa, chamava a atenção para a necessidade “de legislar e dar as providências mais sábias e enérgicas” sobre duas questões fundamentais à prosperidade e conservação do reino do Brasil: a catequização geral e progressiva dos índios bravos e a melhoria “da sorte dos escravos, favorecendo a sua emancipação gradual e conversão de homens imorais e brutos em cidadãos ativos e virtuosos”. “Combinar sabiamente tantos elementos discordes e contrários, e em amalgamar tantos metais diversos, para que saia um todo homogêneo e compacto, que não se esfacele ao pequeno toque de qualquer nova convulsão política”, era o seu objetivo. Somente assim seria possível formar “em poucas gerações uma nação homogênea, sem o que nunca seremos verdadeiramente livres, respeitáveis e felizes”. No entanto, para as elites, acima de tudo, devia preservar-se a integridade do futuro império brasileiro e, na conjuntura incerta da independência, ainda que fosse preciso conter o aumento do número de escravos, para manter a ordem e evitar tumultos sociais, isso significava a manutenção do sistema escravista. Em contraponto, não deixa de ser interessante verificar, por fim, a situação do outro grande contingente excluído, o das mulheres. Embora não possuíssem o direito de voto e não fossem consideradas cidadãs plenas, o novo clima gerado pelos acontecimentos de 1820 fez com que surgisse na imprensa, de maneira um tanto surpreendente, discussões sobre os direitos políticos das mulheres, considerados até mesmo no próprio plenário das Cortes de Lisboa. Nele, Domingos Borges de Barros, deputado brasileiro pela província da Bahia, apresentou a proposta de que a mãe de seis filhos legítimos tivesse voto nas eleições e, apesar de ligar a cidadania da mulher à maternidade, não deixou de levantar outros aspectos bastante modernos para a época. Recorrendo a exemplos ilustres, como Madame de Staël – nome este inúmeras vezes vetado, na época, pelos censores régios –, o sexo frágil, segundo ele, não apresentava defeito algum que o privasse daquele direito, embora os homens, ciosos de mandar e temendo a superioridade das mulheres, preferissem conservá-las na ignorância. Ao contrário, as mulheres rivalizavam com os homens, ou mesmo os excediam, em talentos e em virtudes. Contudo, nem todos pensavam como ele. O deputado português Borges Carneiro defendeu que a proposta não fosse admitida à discussão, pois se tratava do exercício de um direito político, e dele são as mulheres incapazes, já que elas não têm voz na sociedade pública, posição esta que, colocada em votação, foi acatada pela maioria, como registra o Diário das Cortes.

No Brasil, a participação da mulher como membro integrante da sociedade política não deixou de ficar consignada em alguns documentos, em especial, algumas cartas de mulheres paraibanas, publicadas em 1823, no jornal Sentinela da Liberdade na Guarita de Pernambuco, de autoria de Cipriano Barata. Nele encontram-se três cartas das “matronas liberais”, que agradecem o grande trabalho do redator em esclarecê-las sobre as obrigações que deveriam ter com a Pátria. Consideravam-se “metade da sociedade humana” e, apesar de reconhecerem a fraqueza de seu sexo, não cediam “em valor, nem em patriotismo ao mais intrépido e guerreiro cidadão”, declarando que se encontravam “na firme resolução (se preciso for) de unidas aos nossos esposos, pais, filhos e irmãos” lançarem “mãos das armas” e fazerem “a mais cruenta guerra aos sectários do nefando despotismo”. A primeira das cartas, escrita em junho de 1823, trazia cem assinaturas. Seguiu-se uma outra, de Leocádia de Melo Moniz, redigida no mesmo mês, e uma terceira, com 21 assinaturas, datada de setembro do mesmo ano. Apesar de não reivindicarem direito de voto ou participação política, depreende-se dessas missivas que essas mulheres se colocavam em pé de igualdade com os homens em função de seu patriotismo e da luta pela liberdade.

Essas atitudes originais evidenciam o quanto o período da independência foi rico em debates. Essa fermentação, no entanto, não foi suficiente para gerar uma revolução, como quis ver José Honório Rodrigues (1975-1976). Sem dúvida, os autores desses jornais e panfletos foram capazes de ver na palavra escrita uma fonte de poder capaz de produzir reformas e, ao divulgarem o ideário do liberalismo, por meio de uma pedagogia do constitucionalismo, forjaram o separatismo que, durante o ano de 1822, levaria ao rompimento entre o Brasil e a antiga metrópole. Mais importante ainda, criaram as bases ideológicas sobre as quais, posteriormente, iria assentar-se o novo país. Contudo, ao temerem qualquer alteração brusca da ordem social e ao fecharem os olhos para os problemas específicos da implantação do liberalismo na América portuguesa – em particular, as contradições criadas pela escravidão –, acabaram implantando um simulacro do ideário que defendiam. O resultado foi que, ao invés

de dar origem à participação política e à noção de cidadania, a independência redundou num modelo de nação do qual a maioria ficou excluída, valendo a cultura política gerada pelos inúmeros textos impressos somente como um instrumento educacional da própria elite, a fim de garantir o lugar que ocuparia na estrutura de poder do futuro Império do Brasil.

No fundo, ainda que essa proposta de um Império brasileiro – decorrente de uma percepção ilustrada da realidade, que se generalizou no início do século XIX pelo mundo luso-brasileiro, em oposição à visão litúrgica característica do Antigo Regime – reconhecesse na política do Estado um instrumento de ação sobre a sociedade, ela não foi capaz de criar normas impessoais escritas, sob a forma de lei, que elevassem os súditos à condição de cidadãos. Ao contrário, como já assinalou, mais uma vez, José Murilo de Carvalho (1996), a cidadania no Brasil foi construída de cima para baixo, predominando a cultura política que Almond e Verba denominaram súdita, quando não paroquial, em que o relacionamento dos indivíduos com o Estado, que define a cidadania, consiste na submissão passiva ao produto de decisões político-administrativas situadas em outra esfera. Situação paradoxal que faz com que se contraponham “a grande dependência em relação ao Estado e o extremado legalismo à atitude freqüentemente desrespeitosa e anarquizante diante do poder e das leis”.

Nessa perspectiva, o liberalismo no mundo luso-brasileiro padeceu de limites profundos, estabelecidos pelas dimensões restritas da esfera política propriamente pública. A cultura política Da independência implantou, sem dúvida, certas práticas fundamentais do liberalismo, capazes de converter a Coroa em Estado, ao extrair a política dos círculos palacianos para situá-la na praça pública; ao organizar a sociedade por meio de uma Constituição, ainda que outorgada; e ao estabelecer uma divisão de poderes que definia algum espaço para a participação dos cidadãos, como as eleições. A autêntica vida pública, porém, não foi capaz de estender-se além de uma elite, mais intelectual e política que social, sediada nas principais cidades e temerosa de afetar os interesses quase sempre mudos dos poderosos de todas as latitudes. Neste sentido, as hesitações do poder, que não conseguia substituir as velhas armas da censura e da repressão pela novidade da ideologia, e a cesura fundamental da sociedade, enraizada na visão de mundo tradicional, que distinguia livres e cativos, inviabilizaram a condução do liberalismo e da prática da cidadania às suas últimas conseqüências. Os argumentos liberais permaneceram meros artifícios retóricos, que, ao criarem a ilusão da política (Furet, 1983), possibilitaram, e continuariam possibilitando, que o mais importante ficasse subterrâneo, emperrando a formação da nação, ao legitimar o domínio tradicional de uma pequena elite e ao assegurar a exclusão dos demais”.

(Caderno Cedes, Campinas, v. 22, n. 58, p. 47-64, dezembro/2002). Disponível em http://www.cedes.unicamp.br

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