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domingo, 21 de março de 2010

PSS 1 - A CIDADANIA NA DEMOCRACIA GREGA

A cidadania na democracia grega (Atenas)


Pensar a cidadania nos limites do Estado nacional brasileiro ou até mundialmente, é uma necessidade prioritária nos dias atuais. Contudo essa cidadania de hoje não pode ser vista como uma repetição, continuidade ou até resultado de um desenvolvimento progressivo da cidadania antiga. A experiência da nossa cidadania de direitos (civis, políticos e sociais) é única na História humana e tem inicio no processo de dissolução das tiranias absolutistas e nas lutas por direitos que foram travadas no interior do Estado liberal plenamente consolidado no decorrer do século XIX.

Essa experiência histórica, portanto, difere integralmente das experiências de democracia e cidadania da antiguidade, embora muitos insistam em ver o mundo Greco-Romano como único berço da civilização atual. Se existe algo que poderemos fazer, portanto, será tentar aproximar dois mundos distintos, direcionando nosso olhar para aquelas contribuições que as experiências cidadãs antigas podem oferecer a nossa, ressaltando suas especificidades históricas.

Iniciemos essa discussão pela mais explicita de todas as diferenças entre o mundo antigo e o atual. O mundo Greco-Romano não estava estruturado como o mundo atual e seus Estados nacionais. As cidades-Estado, “que conhecemos pela tradição escrita, pela epigrafia ou pelas fontes arqueológicas, eram muito diferentes entre si: nas dimensões territoriais, riquezas, em suas histórias particulares e nas diferentes soluções obtidas, ao longo dos séculos, para os conflitos de interesses entre seus componentes. A maioria delas nunca ultrapassou a dimensão de pequena unidade territorial, abrigando alguns milhares de habitantes – não mais que cinco mil, quase todos envolvidos com o meio rural. Outras, de porte médio, chegaram a congregar vinte mil pessoas. Algumas poucas, portos comerciais ou centros de grandes impérios, atingiram a dimensão de verdadeiras metrópoles, com mais de cem mil habitantes – e, por vezes, como na Roma imperial, chegaram à escala de um milhão de pessoas. (...) sob o termo cidade-estado abarcamos povos distintos, culturas diferentes, com seus próprios costumes, hábitos cotidianos, leis, instituições, ritmos históricos e estruturas sociais, (...) cujo destino foi, ao longo do tempo, marcado por imensa variedade de projetos e soluções”. (GUARINELLO, Norberto Luiz. Cidades-Estado na antiguidade clássica. In PINSK, Jaime (org.). História da cidadania. São Paulo: Contexto, 2008. P.30).

Considerando, portanto, essa especificidade essencial, a da cidade-estado, nossa trajetória inicial será a de uma história da cidadania na cidade-estado de Atenas, não sem antes situá-la no contexto histórico-social do mundo grego.

As origens das cidades-estado na Grécia


A Grécia antiga

A Grécia antiga abrangeu a região denominada Hélade, compreendendo o sul da Península Balcânica (Grécia Continental), a Península do Peloponeso (Grécia Peninsular), as Ilhas do Mar Egeu (Grécia Insular), as colônias no litoral da Ásia Menor (Grécia asiática) e a porção meridional da península itálica (Magna Grécia). Na Grécia continental, região em que viveram os mais longínquos antepassados dos gregos, o solo predominante e árido e pedregoso, o que dificultava a prática da agricultura. O relevo, mais acidentado, tornava difícil a comunicação entre os vários pontos do interior dessa região, contribuído para o seu fracionamento político. No litoral, por outro lado, havia a facilidade de comunicação pelo mar. sendo extremamente recortada, a costa grega apresentava uma série de portos naturais, dos quais embarcações partiam com destino as ilhas do Egeu, a costa da Ásia menor ou a outros pontos da própria Grécia continental.

Do ponto de vista étnico, a civilização helênica teve como origens os cretenses (Civilização Egéia), os pelasgos (habitantes primitivos da Península Balcânica) e os povos indo-europeus (árias ou arianos – Aqueus, Eólios, Jônios e Dórios) que desceram do Planalto do Cáucaso e, por volta de 2000 a.C., penetraram os Balcãs. A essa migração é dado o nome de “invasionismo ária”.

A história da Grécia antiga é dividida em cinco períodos:

PERÍODOS DA HISTÓRIA GREGA

PRÉ-HOMÉRICO – Séculos XX a XII a.C.

HOMÉRICO – Séculos XII a VIII a.C.

ARCAICO – Séculos VIII a VI a.C.

CLÁSSICO – Séculos VI a IV a.C.

HELENÍSTICO - A partir do século IV a.C. (a Grécia perde sua independência, caindo sob domínio macedônio).

A desagregação das comunidades gentílicas e o surgimento das cidades-estado

A estrutura econômica, social, política e religiosa típica do período homérico grego foi formada pelas comunidades gentílicas ou genos. Essa unidade social, de cunho familiar, tinha como autoridade o Pai clânico (Pater), que, ao morrer, era substituído pelo primogênito. Tratava-se de um grupo consangüíneo, cujos matrimônios eram de caráter minúsculo e endogâmico (casamentos realizados dentro da própria família). Quanto ao aspecto econômico, o trabalho e a posse dos meios de produção eram coletivos e a produção era distribuída uniformemente entre todos os membros do clã. Em conseqüência, a sociedade era igualitária, não havendo diferenças econômicas e sociais. No interior do genos, A hierarquia social era baseada nas relações de parentesco, ocupando o topo da pirâmide social aqueles que eram mais próximos ao pater, cujo poder político decorria do fato de oficiar o culto aos antepassados e, também, de comandar o exército familiar. A legislação era oral e consuetudinária.

As comunidades gentílicas existiram durante quase todo o período homérico. Apenas por volta do século VIII a.C., iniciou-se o processo de desintegração dos genos, fenômeno que evoluiu mais rapidamente em algumas regiões do que em outras.

O fator preponderante foi o crescimento dos genos e a decorrente escassez de gêneros alimentícios – já que a produção agrícola coletiva era ineficiente e as terras férteis escassas. A luta pela sobrevivência, que dependia basicamente da terra, desencadeou uma serie de guerras entre os genos fato que, por sua vez, impulsionou a ocorrência de transformações que determinaram mudanças nas estruturas internas e nas relações entre os genos aliados. A primeira dessas grandes mudanças foi o surgimento da propriedade privada da terra e, Consequentemente, o estabelecimento de desigualdades sociais. Os parentes mais próximos do Pater, que passaram a ser chamados de Eupátridas (os “bem nascidos”), receberam as melhores terras; os mais afastados, denominados Georgoi (agricultores), ficaram com as terras menos férteis. Os agregados a parentela do Pater não adquiriam qualquer posse fundiária, recebendo a alcunha de Thetas (“marginais”). A partir daí, o processo evoluiu para a constituição de autenticas classes sociais tendo a frente os Eupátridas – elite dominante – formadores de uma aristocracia (do termo grego “aristoi”, que significa os “melhores”). Segundo AQUINO, “Efetivamente não é um problema fácil precisar o aparecimento da propriedade privada na origem das sociedades. Pouco a pouco, os membros dos genos começaram a separar parcelas de terra e a convertê-las em propriedade privada familiar. (...) As famílias dos chefes recebiam os melhores lotes. Foi-se estabelecendo, assim, uma nítida diferenciação social, a partir da riqueza, liquidando a igualdade primitiva. Da comunidade começou a destacar-se uma aristocracia de nascimento, cujo poder se baseava na propriedade da terra. A desintegração do regime gentílico provocou o aparecimento de thetas – membros da comunidade excluídos da partilha das terras. As péssimas condições de existência dos thetas estão descritas nos poemas homéricos. Ao mesmo tempo, começaram a aparecer os primeiros escravos, em numero reduzido: tratava-se da escravidão domestica ou patriarcal, em que o escravo trabalhava ao lado do homem livre, seu proprietário, auxiliando-o nas tarefas produtivas (...)”.(AQUINO, Rubim Santos Leão de. História das sociedades: das comunidades primitivas às sociedades medievais / Rubim Santos Leão de Aquino, Denize de Azevedo Franco, Oscar Guilherme Pahl Campos Lopes. – Rio de Janeiro: Ao livro técnico, 2000, p.177.).

Por outro lado, em decorrência das guerras, as relações entre os genos aliados tenderam a se caracterizar por um processo de aglutinação. Na eventualidade de ameaças militares, os genos se agrupavam, formando as fratrias, que, reunidas, deram origem às tribos. Da reunião de várias tribos surgiram os demos que, unificados, originaram a Cidade-Estado (Polis), instituição política típica da civilização grega.

Com a crise das comunidades gentílicas, a Grécia continental se transformou em palco de inúmeros conflitos e tensões sociais: a escassez de solos agricultáveis e a crescente expansão demográfica levaram inúmeros excedentes populacionais gregos a buscar outras regiões para sua sobrevivência. Teria início o processo de colonização helênica do Mediterrâneo, onde foram criadas inúmeras Polis, notadamente na área meridional da Península Itálica e na Ilha da Sicília (Magna Grécia). Também no litoral do Mar Negro, floresceram inúmeras colônias gregas. Esse processo migratório foi denominado de segunda diáspora grega.

Os primórdios das cidades-estado gregas (SÉCULO VIII A.C.)

A cidade-Estado não foi uma invenção dos gregos. Muito antes, a sociedade mesopotâmica dos sumérios e os fenícios já se haviam organizado politicamente em cidades-Estado. Na Grécia, essa forma de organização política teve origem no final da época homérica e no inicio da chamada época arcaica. Sua origem está ligada à progressiva desintegração dos genos, fenômeno marcado pelo estabelecimento da propriedade privada e de desigualdades sociais, quando uma aristocracia de nascimento distanciou-se do restante da comunidade, apoderou-se dos meios produtores de riquezas e, consequentemente, do poder político.

Além do exposto, o processo de formação das Polis gregas foi acompanhado de algumas outras características gerais, a saber:

• As comunidades (ligadas pelo parentesco direto ou indireto) se uniram obedecendo ao principio da territorialidade ou da vizinhança. As comunidades de vizinhança se uniram dando origem a Polis, com governo próprio, em um processo conhecido como sinecismo (agrupamento).

• As cidades-estado se formaram a partir do desenvolvimento da propriedade não coletiva da terra. Se o caso de Esparta foi o da formação de uma associação de proprietários que se organizava em torno de um Estado militarizado, a imensa maioria delas surgiu como uma associação de proprietários privados da terra, condição restrita aos membros da comunidade. Assim, a cidadania da polis em seu inicio estava ligada a terra, o sentimento de pertencimento a essa comunidade era o da apropriação individual das terras que antes haviam sido coletivas.

• O fato que acelerou a formação das Polis gregas foi o desenvolvimento das trocas e do artesanato. O aparecimento de uma escravidão embrionária tornou possível a separação entre agricultura e artesanato. A separação entre agricultura e artesanato, por sua vez, aumentou a necessidade de trocas. Cedo, o volume das trocas não mais comportou restringir-se ao quadro econômico dos genos, de nível de subsistência, passando a ocorrer de forma mais ampla e sistemática. Ao mesmo tempo, todo esse processo foi dinamizado pela expansão territorial (segunda diáspora) que aumentou em variedade e quantidade o fluxo das mercadorias. Assim, em linhas gerais, as Polis foram os núcleos urbanos onde as trocas comerciais e o artesanato se desenvolveram rapidamente.

• O progressivo crescimento das atividades comercial e artesanal foi acompanhado pelo aumento do uso do braço escravo nas atividades urbanas e na agricultura. A Polis tornou-se o centro da exploração dos escravos e dos camponeses pobres, pois abrangia o núcleo urbano e as áreas adjacentes. A sociedade grega transformou-se em sociedade escravista, composta de duas classes antagônicas: de um lado, a aristocracia proprietária de terras e escravos; de outro, os escravos, que não possuíam direitos. Entre essas duas classes sociais básicas, situavam-se: no campo, pequenos proprietários, geralmente endividados com a aristocracia fundiária; na cidade, os artesãos livres, ameaçados com o predomínio dos escravos nas oficinas, os comerciantes e os armadores, fortalecendo-se com o comércio marítimo. Assim, a desagregação das comunidades gentílicas gerou profundos antagonismos internos.

• Mas as Polis gregas não foram marcadas somente por antagonismos internos. Cada uma delas, consciente de sua soberania, tendia a expandir-se à custa de regiões vizinhas gerando rivalidades externas (entre as Polis). O estado de permanente rivalidade entre as cidades gregas beneficiava os comerciantes de escravos (os militarmente derrotados eram escravizados) e possuía relação com os conflitos sociais internos das cidades porque a crescente escravização impedia o uso produtivo da população excedente.

• Ao longo da antiga História da Grécia, floresceram mais de 160 cidades-Estado. Quase todas elas eram localizadas em colinas, cujo símbolo da autonomia era a Acrópole, templo construído no topo das elevações topográficas onde também se localizavam a residência do Basileu (Rei) e o local de reunião do conselho de aristocratas. Com o desenvolvimento das trocas comerciais e do artesanato, surgiu a parte baixa da cidade: a Ágora (praça do mercado usada para transações comerciais e reuniões públicas) e, nas cidades litorâneas, o porto (por exemplo, o Pireu, em Atenas), por onde se fazia importação e exportação de mercadorias. Além desses elementos típicos as cidades gregas possuíam teatro, ginásio de esportes e uma fonte que abastecia um reservatório de água.

• As cidades gregas eram, em geral, pequenas, contribuindo para isto alguns elementos: os meios de subsistência eram relativamente escassos para atender a demanda do crescimento demográfico e a concentração fundiária limitava ainda mais a viabilização da sobrevivência para grandes concentrações humanas tanto que, no século VIII a.C., os gregos enfrentaram a “alternativa de morrer de fome ou exportar o excedente da população para além-mar, com o objetivo de tomar posse, pela força militar, de novas terras cultiváveis”. (TOYNBEE, A. J., Helenismo: História de uma civilização. Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1969, p.48). Contudo, vale ressaltar, Esparta e Atenas se constituíram como exceções ao padrão dimensional das cidades gregas. Segundo BURNS, “(...) Esparta e Atenas tinham, invariavelmente, a maior extensão e população. No auge de seu poder. Atenas e Esparta, cada qual com uma população de cerca de 400.000 habitantes, contavam com uma força numérica aproximadamente três vezes maior que a da maioria dos Estados vizinhos”. (BURNS, EDWARD McNALL. História da Civilização ocidental: do homem das cavernas as naves espaciais / EDWARD McNALL BURNS, ROBERT E. LERNER, STANDISH MEACHAM; São Paulo: Globo, 2003, p.95).

ATENAS

Atenas, fundada pelos jônios, localizava-se no centro da planície da Ática, próxima ao mar Egeu. A região, circundada por montanhas, foi poupada da invasão dórica, fato que conferiu maior estabilidade ao desenvolvimento inicial da cidade. A Ática, cujo solo era relativamente pouco fértil, conhecia, entretanto, uma boa reserva florestal que fornecia abundante madeira para a construção naval, além de dispor de grandes reservas de prata e chumbo, muita argila e grandes pedreiras de calcário e mármore. O ferro, por seu turno, era escasso. Todas essas condições naturais, acrescidas ao fato de que próximo à Atenas estava situado o Porto de Pireu, foram as causas da vocação comercial marítima da cidade. Desde seu início, Atenas desenvolveu o comércio no Mediterrâneo, tornando-se importante pólo econômico da região. As navegações tiveram um decisivo impacto sobre a sociedade ateniense: ao contrário dos espartanos, voltados as questões internas e culturalmente limitados, os atenienses tornaram-se verdadeiros “cidadãos do mundo”, recebendo influências de inúmeros povos. Isso, inegavelmente, contribuiu para que Atenas não só se tornasse uma cidade economicamente próspera, mas também culturalmente rica. Nas ruas da Polis eram ouvidas inúmeras línguas estrangeiras, dando a cidade um caráter cosmopolita.

”A ocupação da Ática pelos indo-europeus (arianos) data do século X a.C., quando os Jônios, em penetração pacifica, miscigenaram-se com os antigos habitantes, estabelecendo-se em aldeias fortificadas e vivendo sob o regime gentílico. Mais tarde, algumas dessas cidadelas fundiram-se formando Atenas. O historiador grego Tucídides escreveu que a fusão dos povoados da Ática para fundar Atenas e a criação do Estado deveu-se ao rei Teseu, que aboliu os conselhos e magistraturas e reuniu todos os habitantes em uma cidade, onde instituiu um só conselho... a esse processo denominamos sinecismo”. (AQUINO, Rubim Santos Leão de. História das sociedades: das comunidades primitivas às sociedades medievais / Rubim Santos Leão de Aquino, Denize de Azevedo Franco, Oscar Guilherme Pahl Campos Lopes. – Rio de Janeiro: Ao livro técnico, 2000, p.189.). Desta forma, Atenas se originou da concentração de quatro tribos que, progressivamente, foram sendo unificadas em torno de um centro político instalado na Acrópole e que teve no regime monárquico o seu marco político inicial.

A Atenas oligárquica

Como resultado político da decomposição da sociedade gentílica, através do processo conhecido como sinecismo, Atenas, inicialmente, organizou-se sob o regime monárquico. O fortalecimento da aristocracia, composta por grandes proprietários de terra e escravos, solapou as bases da monarquia que, pouco a pouco, foi suplantada por uma oligarquia. Tal evolução ocorreu pacificamente, através do crescente esvaziamento das funções do Basileu (Rei), que acabaria se tornando apenas um chefe religioso, com poder simbólico. Segundo AQUINO, “No século VIII a.C., a realeza também já se encontrava em dissolução: a obediência ao rei era apenas nominal, por parte dos chefes das famílias nobres ou clãs, reunidos no Areópago. Nos meados do século, a realeza cedeu lugar ao regime aristocrático: o Arcontado, composto por nove Arcontes, substituiu o rei nas funções executivas. Os Arcontes, eleitos pela aristocracia territorial que se tornava escravista, tiveram mandato, a principio, com duração de dez anos; depois, de apenas um ano. O principal era o Arconte Epônimo, com funções administrativas; O Arconte Basileus, ficou com as funções religiosas; as funções militares (TAMBÉM JURIDICAS SOBRE ESTRANGEIROS) couberam ao Arconte Polemarca e os Arcontes Thesmothetas aplicavam a justiça sobre os atenienses que gozavam ou não dos benefícios da cidadania. Através do Areópago, a aristocracia territorial estabelecia as diretrizes de atuação dos magistrados”. (AQUINO, Rubim Santos Leão de. Op. Cit., p.190.).

Todos esses magistrados eram eleitos pela Eclésia, assembléia que representava os cidadãos atenienses. Havia ainda o Areópago, conselho formado exclusivamente por elementos recrutados dentre a aristocracia, responsável pela fiscalização dos Arcontes e elaboração das leis.

Nessas formas iniciais de estrutura política encontramos o sentido de cidadania entre proprietários de terra. Como vimos, de inicio, a cidade-estado foi uma associação de proprietários de terra. Mas o fato é que no interior dessa associação somente os grandes proprietários formulavam, decidiam e executavam políticas; ele eram, de fato, a comunidade, a Polis no sentido do termo. A forma política inicial dessa associação foi uma monarquia que, porém, logo foi substituída pela oligarquia. No regime oligárquico ateniense os grandes proprietários de terra (o grupo dos eupátridas) detinha todo o poder político já que dominavam o Arcontado (responsável pelo poder executivo), o Areópago (o conselho que de fato decidia) e a Eclésia (a assembléia dos proprietários que escolhiam os magistrados – Arcontes e conselheiros). Contudo, o desenvolvimento sócio-economico de Atenas e os conflitos sócio-políticos subseqüentes, mudariam essa configuração, gerando novas estruturas de poder e ampliando a própria abrangência da cidadania. A democracia ateniense e seu sentido de cidadania foi o ponto culminante das transformações.

A democracia escravista ateniense

O regime democrático foi estabelecido em Atenas na época do governo de Clístenes, ou seja, no final do século VI a.C. Eleito Arconte em 506. a.C., Clístenes empreendeu uma série de reformas política e administrativas, democratizando o regime ateniense.

As reformas de Clístenes instalaram em Atenas um novo regime político, cujas bases fundamentais eram a igualdade política de todos os cidadãos e a participação direta dos mesmos na maquina governamental. O principal aspecto de suas reformas foi à criação de uma nova estrutura de recrutamento para participação política. Os cidadãos foram distribuídos em demos (unidades organizacionais de caráter local às quais todos os indivíduos eram obrigados a pertencer formalmente). Os demos foram distribuídos em três grupos, num total de cem demos:

OS DEMOS DA ATENAS DEMOCRÁTICA

DEMOS DA CIDADE DE ATENAS - Agrupava os indivíduos dedicados as atividades de comércio e artesanato, além dos trabalhadores urbanos.

DEMOS DO LITORAL - Congregava pescadores e navegantes.

DEMOS DO INTERIOR - Reunia os grandes e pequenos proprietários rurais.

A divisão em demos veio a substituir a tradicional divisão em 04 tribos e as tribos tradicionais foram, para efeito de recrutamento político, substituídas por novas. Nelas, haviam representantes de todos os setores sociais (exceto escravos, estrangeiros e mulheres). Nessa nova organização social não havia chance de a antiga base aristocrática prevalecer porque os representantes políticos escolhidos pelas tribos tinham que pertencer a todos os demos que delas faziam parte, o que pluralizava a escolha. As tribos formavam a base para o recrutamento militar e político.

Ao mesmo tempo, foi realizada a reforma das instituições políticas:

A DEMOCRACIA DE ATENAS (REFORMAS INSTITUCIONAIS DE CLÍSTENES)

ARCONTADO – Passou a exercer apenas funções de natureza honorífica.

AREÓPAGO – Passou a exercer apenas o papel de tribunal religioso.

BULÉ (CONSELHO DOS 500) – Foi ampliado para 500 membros eleitos a razão de 50 membros por tribo. Sua principal função era preparar os projetos de lei que seriam votados irrevogavelmente pela Eclésia.

HELIEU – Transformou-se no supremo órgão judiciários e seu membros eram escolhidos por sorteio.

ECLÉSIA – A Assembléia popular, foi transformada no supremo órgão de decisões em Atenas. Dela faziam parte todos os cidadãos de Atenas, ou seja, aqueles que fossem registrado no demos de origem e fossem filhos de pai ateniense e maiores de 18 anos. Da assembléia eram excluídos os estrangeiros, as mulheres e os escravos.

ESTRÁTEGOS (10) – Chefes militares eleitos anualmente pelas tribos.

INSTITUIÇÃO DO OSTRACISMO – Espécie de medida defensiva do Estado contra o ressurgimento dos regimes anteriores. Consistia no banimento, perda dos direitos políticos e confisco temporários de bens (por um período de 10 anos) de qualquer cidadão cuja atuação política fosse considerada uma ameaça a democracia. O ostracismo era votado, exclusivamente, na assembléia.

Pode-se dizer que Clístenes ampliou e aprofundou as reformas de Sólon, democratizando o sistema. Aos comerciantes, interessados em dirigir politicamente Atenas, era fundamental ampliar a sua base eleitoral que era conquistada voto a voto. Contudo. “A massa da população permaneceu miserável e os cidadãos que dela se originavam exerciam seu direito ao voto mediante compromissos com os que tinham posses. Como estes eram, agora, majoritariamente comerciantes, o exercício do poder político foi consolidado nas mãos dessa classe”. (ROSTOVTZEFF, M. História da Grécia. São Paulo, ZAHAR editores, 1991, p. 121).

A democracia ateniense era uma democracia escravista e excludente: o trabalho escravo era a base da vida econômica da sociedade, e os escravos constituíam, senão a maioria, pelo menos uma parcela significativa da população da Ática. Os escravos não tinham qualquer direito político. Os estrangeiros, em geral comerciantes, só possuíam direitos civis e estavam excluídos da vida política. Já as mulheres não possuíam direitos políticos e tinham seus direitos limitados pelo pai ou pelo marido. “Nestas condições, a democracia ateniense, quando confrontada com as nossas modernas democracia, surge como uma oligarquia de fato, simplesmente menos restrita que uma oligarquia de direito. Mas as concepções modernas não nos fornecem uma medida adequada. Sua inadaptação, salta aos olhos no que diz respeito a escravidão, que todas as sociedades antigas admitiram como uma necessidade natural, uma realidade fundamental. Por definição, o cidadão deve gozar de sua liberdade pessoal: como imaginar-se o escravo tornando-se politicamente igual àquele que continuaria a ser seu senhor e como evitar esta monstruosidade (a escravidão) sem prejudicar a organização social?”. (AYMARD, A. e AUBOYER, J. O oriente e a Grécia antiga. In História geral das civilizações, Tomo I, 1º volume, São Paulo, DIFEL, 1955, p.124).

Em Atenas, a democracia era direta e não representativa. Noutros termos, as decisões políticas não eram tomadas por delegados ou representantes do povo, mas sim pelos cidadãos reunidos na Ágora (praça). Deve-se lembrar que, ao contrário do que ocorre nas atuais democracias ocidentais marcadas pelo conceito de “direitos dos cidadãos”, a democracia ateniense consistia no dever da participação de todos na vida política. Em síntese: hoje, os indivíduos reclamam seus direitos; na Atenas democrática, o indivíduo era obrigado a opinar sobre os assuntos da Polis. Daí o termo Política: a arte de bem conduzir a administração da cidade.

O auge da democracia em Atenas

Do ponto de vista político, o período clássico de Atenas foi marcado pelo apogeu da democracia, em parte devido a liderança de Péricles, cujo governo – no século V a.C. – foi denominado de o “século de ouro”. Durante sua gestão (461 a 429 a.C.), o regime democrático ateniense baseou-se em dois princípios fundamentais: o da isonomia (normas iguais), que propunha a igualdade de todos perante a lei, e o da isocracia (poderes iguais), que consistia no direito da participação de todos nas decisões políticas. Como abordamos no capitulo anterior, a democracia ateniense era direta, enquanto hoje, nas sociedades ocidentais, prevalece a democracia exercida através de representantes. No tempo de Péricles, os cidadãos se reuniam na Ágora (praça) para conduzir os assuntos da Polis. O governo era, dessa maneira, “do cidadão e pelo cidadão”. As assembléias populares eram comícios ao ar livre que agrupavam todos os cidadãos masculinos em idade militar e filhos de pais atenienses.

Péricles representava os interesses de amplas camadas do povo ateniense: comerciantes, artesãos, pequenos proprietários e grandes cultivadores de vinha e oliveira, cujos produtos destinavam-se ao comercio externo. Como líder do partido democrático ou popular, procurou realizar uma política que atendesse as reivindicações das camadas mais populares da sociedade. Nesse sentido foi empreendida uma serie de reformas que não alteraram o caráter de classe da sociedade: a democracia escravista saiu fortalecida. Essas reformas foram progressistas, na medida em que concederam maior espaço de ação política as camadas populares. “Durante seu governo instituiu-se a mistoforia, ou seja, a remuneração pelo desempenho de cargos públicos; além disso, soldados e marinheiros passaram a receber salários. Com vistas a assegurar a participação democrática de todos os cidadãos na vida publica, todos os funcionários (magistrados e outros), a exceção dos estrátegos, eram escolhidos por sorteio. Nessa época, o poder executivo era exercido de fato pelos estratégos e, entre eles, se sobressaía a figura de Péricles”. (AQUINO, Rubim Santos Leão de. Op. Cit. p.200.).

As decisões tomadas na Eclésia, representavam a palavra final nos tratados, na economia, no ordenamento jurídico, nas obras públicas, na paz e na guerra, em suma, em todas as atividades administrativas. As assembléias eram cotidianas e todos tinham o direito de fazer uso da palavra. Assim, a oratória tornou-se indispensável para o convencimento das massas. Se a Ágora era o espaço geográfico do poder, nele imperava o Logos (a palavra). A democracia ateniense, dessa maneira, gerou os demagogos (“demos”: povo; “gogos”: condutor), líderes que buscavam persuadir e seduzir politicamente a população. Os demagogos tinham como mestres os sofistas, os primeiros professores pagos na história da humanidade. A sofística, escola filosófica nascida em Atenas, defendia o relativismo do conhecimento: a verdade é aquilo que é útil para tomada e manutenção do poder.

Protágoras, o maior dos sofistas, resume essa postura ao afirmar que “o homem é a medida de todas as coisas, das que são enquanto são e das que não são enquanto não são”. Esse pragmatismo, aparentemente nocivo ao saber filosófico, tem a virtude política de defender a sociedade democrática, na qual prevalece a pluralidade de opiniões. De fato, a crença numa verdade absoluta sempre traz consigo a proposta de um Estado autoritário que imponha essa verdade.

A democracia ateniense, calcada na ação de todos, impossibilitava a criação de estruturas partidárias elitistas e concentradoras da autoridade. Outro fato importante do regime democrático de Atenas era a inexistência de grandes quadros burocráticos: poucos eram os funcionários públicos, limitados a alguns escriturários. Dessa forma, impedia-se a burocratização da sociedade com seu inevitável tráfego de influências. Foi o próprio Péricles, governante do auge da democracia ateniense, quem melhor ressaltou as virtudes do sistema: “Nossa constituição é chamada de democracia porque o poder está nas mãos não de uma minoria, mas de todo o povo. Quando se trata de resolver questões privadas, todos são iguais perante a lei, quando se trata de colocar uma pessoa diante de outra em posição de responsabilidade pública, o que vale não é o fato de pertencer a determinada classe, mas a competência real que o homem possui”.

A cidadania na democracia ateniense


Foi nos marcos da democracia ateniense que se elaborou a primeira visão de cidadania da história humana. Assim, cidadania na democracia ateniense equivaleria aos direitos políticos do cidadão nos días atuais. O sentido da cidadania era substancialmente diferente daquele que a palavra adquriu na contemporaneidade porque não incluia nem direitos civis nem, tão pouco, direitos sociais.

Atenas é considerada o modelo de democracia do mundo grego clássico. Todavia, sua cidadania não era universal. Escravos, mulheres e estrangeiros não faziam parte do corpo de cidadãos. Só os individuos do sexo masculino, libres e maiores de dezoitos anos que cumprissem determinados ritos, eram conhecidos como cidadãos. Tão logo atingisse esse grau, o individuo “pode e, em principio deve, participar da vida política. Como o regime corresponde a uma democracia direta, todos os cidadãos são chamados a reunir-se periodicamente (cerca de 40 vezes por ano) no recinto da assembléia do povo para deliberar e votar as proprostas que emanam de um magistrado ou de um conselho restrito de cidadãos (o conselho dos quinhentos), escolhidos ao acaso entre os voluntarios e renovável todos os anos, ou ainda de um simples cidadão. Em teoría, portanto, qualquer cidadão pode ter assento na assembléia, propor leis e emendas às leis e, se tiver sorte, tornar-se temporariamente um responsável político na condição de bouleute (membro do Bulé – conselho dos 500) ou de Prítane (um bouleute em função permanente durante um décimo do ano) ou epistate dos Prítanes (presidente sorteado por 24 horas) ou ainda proedro (presidente) da Assembléia do povo (no século V). O sorteio é considerado uma espécie de tradução da escolha dos deuses e, nesse sentido, a igualdade de oportunidades é, em principio, total.

[…] Durante muito tempo, só aqueles que não precisam trabalhar para sobreviver concordam em perder dezenas de días de trabalho no ano para exercer seus direitos cívicos e, aliás, Aristóteles, ´a perfeição do cidadão só se encontra no homem libre desobrigado de tarefas indispensáveis`. Para tentar remediar essa forte abstenção dos cidadãos mais pobres, a democracia ateniense cria, a partir do início do século IV, uma indenização diária, o misthos, para compensar – e encorajar – os cidadãos que sacrificam uma parte de seu tempo ao cumprimento do deber cívico. […]”.

Analisando a cidadania na democracia ateniense, Guarinello comenta: “Em primeiro lugar, uma ressalva: a cidadania dizia respeito apenas aos cidadãos masculinos e excluía, de qualquer forma de participação política, as mulheres, os imigrantes e os escravos. Em contrapartida, no ámbito restrito dos cidadãos, representou uma experiência notável de participação direta no poder de todas as camadas sociais, independentemente da riqueza ou posição social. Criaram-se mecanismos de indenização pecuniária que facilitavam, aos mais pobres, o acesso a participação na vida comunitária, não apenas nas assembléias e tribunais, mas até mesmo nas festividades cívicas, como a assistência às apresentações teatrais. Os ricos, que se acomodaram como puderam ao sistema democrático, foram obrigados a contribuir com a comunidade de varias formas, construindo naves de guerra, financiando espetáculos e festas religiosas. Grande parte do sucesso da democracia ateniense deveu-se, sem dúvida, ao Império constrído após a guerra contra os persas, cujos beneficios, em tributos e terras cultiváveis, foram distribuídos para os mais pobres. Mas a democracia sobreviveu a derrocada do Império, em grande parte pela constituição, ao longo dos séculos V e IV a.C., de uma verdadeira cultura democrática em sua população”. (GUARINELLO, Norberto Luiz. Op. Cit. P.41).

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