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segunda-feira, 17 de maio de 2010

PSS1 - Revoluções Inglesas e a luta pelos direitos individuais

O respeito aos direitos dos indivíduos: as revoluções inglesas do século XVII.


As revoluções inglesas do século XVII foi um daqueles movimentos que estão inseridos no primado do radicalismo social que pulverizou a chamada idade moderna da história humana. Acompanhando a transição do feudalismo para o capitalismo, elas representaram o inicio do ápice de uma era onde a secularização, o racionalismo e o individualismo puseram abaixo o tradicionalismo herdado da Idade média. A partir de então, o pouco que havia de legitimidade em uma estrutura de poder dominada pelos privilégios concedidos por critérios de nascença e alimentados pela percepção teocêntrica de mundo, manifestada pela Igreja católica, começou a perder força.

O lugar das revoluções inglesas do século XVII é, portanto, o de um movimento que rompeu com a visão ética de uma sociedade que recomendava aos trabalhadores do campo, por exemplo, a aceitação passiva do sofrimento, uma vez que este trazia a certeza da salvação eterna mediante a purificação do caminho para o céu e, ao mesmo tempo, tranqüilizava a consciência dos nobres e do clero quanto a suas vidas de ociosidade.

As revoluções inglesas trouxeram consigo o questionamento aos princípios embasadores do sistema social estamental e uma visão de ruptura com uma percepção da desigualdade entre os homens como algo natural, sacramentado e eterno. Esse questionamento apontou para uma visão histórica da desigualdade. Assim, a desigualdade passou a ter origem entre os homens e, entre eles, num futuro possível, poderia deixar de existir.

Numa visão de cidadania, o processo revolucionário operado na Inglaterra do século XVII representou a transição do súdito, preocupado exclusivamente com seus deveres, para o cidadão, interessado em defender e ampliar os seus direitos o que abriu espaço para o início de uma Era dos Direitos. Nos três séculos seguintes, a era dos direitos seria ampliada pelos próprios cidadãos e nisso surgiriam os direitos civis do século XVIII, os direitos políticos do século XIX e os direitos sociais do século XX, configurando nosso moderno conceito de cidadania. Na aurora desse surgimento é indiscutível a importância das revoluções que ora analisamos – a primeira revolução burguesa da história, que deu origem ao primeiro país capitalista do mundo, a Inglaterra.

História das revoluções inglesas

Quando Elizabeth I morreu, a ausência de herdeiros diretos fez o trono inglês passar a seu primo Jaime I (1603-1625), Rei da Escócia, filho de Maria Stuart, executada a mando da própria Elizabeth. Encerrava-se, assim, a dinastia Tudor e iniciava-se a dinastia Stuart. Com ela, tinha inicio a história do reino unido da Grã-Bretanha, abrangendo Inglaterra, Escócia, Gales e Irlanda.

Os vínculos políticos entre o rei escocês e os grandes senhores feudais levaram a formação de uma frente política no parlamento inglês contra o seu governo, liderada pela burguesia. Com dificuldades, o rei impôs sua autoridade ao parlamento, mas sua origem escocesa aumentava a oposição já existente.

No seu reinado impôs-se o anglicanismo e as perseguições religiosas a católicos e puritanos aumentaram, o que provocou a primeira grande emigração de puritanos para a América, a bordo do navio MAYFLOWER. Por sua vez, um grupo de católicos atentou contra a vida de Jaime I no parlamento, em 1605, fato conhecido como conspiração da pólvora. Foram descobertos, executados, o que aguçou a perseguição contra os “papistas” e motivou a expulsão da ordem dos jesuítas da Inglaterra.

O sucessor de Jaime I, Carlos I (1625 – 1649), tentou ampliar o poder absolutista real violando as prerrogativas do parlamento. Porém, precisando de recursos para custear guerras externas, submeteu-se a petição dos direitos (1628) que garantia a sociedade contra detenções e tributos ilegais. Obtidos os recursos, o rei se voltou contra o parlamento, usando a força para dissolvê-lo em um golpe político.

Em 1640, preocupado com uma rebelião iniciada na Escócia, o Rei convocou o parlamento em busca de apoio político além de procurar aprovar novas taxas e impostos que gerassem recursos para o reforço das tropas inglesas. Mas, diante da insistência da maioria dos parlamentares em limitar seus poderes reais (dissolução dos tribunais reais e revogação dos tributos ilegais), Carlos I tentou dissolvê-lo novamente. Esse confronto deu inicio a uma guerra civil na Inglaterra – Revolução puritana (1642-1649) – na verdade uma guerra que refletia profundas contradições sociais:

“O monarca absolutista inglês tinha o apoio das classes superiores. Pra começar, os senhores feudais e a Igreja anglicana. E também por uma parte da burguesia, que se beneficiava por ter obtido privilégios (exclusividade para certos tipos de comércio e manufaturas). (...) Quem estava contra o Absolutismo? (...) grande parte da burguesia que desejava o fim dos monopólios mercantilistas. Esse setor da burguesia queria prosperar, mas esbarrava nos regulamentos e privilégios concedidos pelo Estado a uma minoria de negociantes. (...) Os nobres estavam divididos. Havia os proprietários feudais tradicionais que apoiavam o Rei. Contudo, No sul do país, tinham os beneficiados pelos cercamentos (a expulsão dos camponeses para criar carneiros...) que forneciam lã para as manufaturas. Esses lucravam junto com a burguesia, constituíam uma nobreza aburguesada conhecida como gentry. (...) Quanto aos camponeses, queriam uma nova situação social, que lhes garantisse a propriedade da terra e a expansão de seus negócios. Isso só poderia acontecer se os nobres tradicionais perdessem a proteção do Rei. (...) Mas o conflito também teve a aparência de uma guerra religiosa. Um lado era composto por anglicanos (veladamente apoiados pelos católicos), outro por puritanos e presbiterianos, ou seja, calvinistas. O apoio dos calvinistas, em sua maioria negociantes, deu ao exército do parlamento o controle dos portos marítimos mais importantes, vantagem logística decisiva.”. (Adaptado de SCHMIDT, Mário Furley. Nova História Crítica: ensino médio: volume único. São Paulo: Nova geração, 2005, pp. 236-239).

A Inglaterra foi dividida em dois partidos: de um lado, alinharam-se as forças fiéis ao Rei, formada pelos grandes proprietários de terra, burgueses privilegiados e seus exércitos – compostos de mercenários conhecidos como cavaleiros – e apoiadas por católicos e anglicanos (sobretudo integrantes da velha nobreza feudal). Do outro lado, os defensores do parlamento (burgueses, nobreza aburguesada, população de Londres e camponeses) formaram o exercito dos puritanos – cabeças redondas – conhecidos pelo corte de cabelo arredondado. A guerra civil terminou com a vitória dos puritanos em 1649, destacando-se no comando das tropas o político e militar Oliver Cromwell. Após a vitória dos cabeças redondas, O rei foi preso, julgado e condenado à decapitação pelo parlamento inglês – pela primeira vez, um poder constituído condenava um monarca à morte, caindo por terra o mito da intocabilidade real.

A república puritana (1649-1658)

Depois da execução do rei, Cromwell detinha o poder de fato, mas era preciso legalizá-lo e estabilizá-lo. A monarquia foi extinta e a câmara dos lordes substituída por um conselho puritano. Paralelamente a oposição foi massacrada: “Esta repressão tinha como objetivo anular duas ameaças. De um lado, a aristocracia feudal, que queria restaurar o absolutismo. Do outro a população das classes baixas, que participou da guerra civil e praticamente não ganhou nada. (...) os levellers (niveladores) defensores do comércio livre para todos, pequena propriedade, fim dos dízimos pagos a Igreja e voto universal e os diggers (escavadores), que propunham que as terras dos nobres fossem confiscadas e distribuídas para as famílias camponesas”. (Adaptado de SCHMIDT, Mário Furley. Op. Cit. P. 240).

Após a consolidação de seu poder, Cromwell pode iniciar reformas que transformariam a Inglaterra em uma potencia mundial. Em 1651, decretou os atos de navegação que reservou a navios exclusivamente ingleses o rentável transporte de mercadorias entre colônias e metrópole. Devido a rompimento de contratos de transporte, os holandeses declararam guerra aos ingleses, mas foram derrotados. Os mares se abriram como nunca para os navios britânicos, o que estimulou a construção da maior marinha mercante do mundo.

Em 1653, Cromwell dissolveu o parlamento e implantou uma ditadura pessoal com apoio do exército e da burguesia comercial. Cromwell recebeu o titulo de lorde protetor da Inglaterra com o direito de indicar o seu sucessor. A ditadura sobreviveu até a morte de seu líder, em 1658, deixando como saldo um enorme crescimento das atividades comerciais inglesas.

Após a morte de Cromwell, seu filho Ricardo assumiu o poder sem estar, no entanto, capacitado para exercê-lo. Não conseguindo administrar as pressões que vinham do parlamento, renunciou em 1660. Para evitar nova luta fratricida, o parlamento restaurou a monarquia e reconduziu os Stuart ao trono, na crença de que o poder real já estava sob controle.

O retorno dos Stuart

Carlos II (1660-1685), filho de Carlos I refugiado na França, foi conduzido ao trono em 1660. Suas pretensões absolutistas colidiram com os intuitos limitadores do parlamento. Além disso, o herdeiro do Rei – seu irmão Jaime – era católico, havendo a possibilidade de o catolicismo voltar a influenciar os negócios internos da Inglaterra. Para afastar essa ameaça, o parlamento aprovou, em 1679, o ato de exclusão, que obrigava todos os membros da corte a prestar juramento ao anglicanismo. Assim, um católico não poderia ser soberano da Inglaterra.

Políticos do parlamento defendiam posições antagônicas a respeito dos direitos do rei: de um lado, os defensores da autoridade parlamentar (WHIGS) e, de outro, os partidários do absolutismo real (TORIES). WHIGS e TORIES originaram, respectivamente, o partido liberal e o partido conservador, que são partidos políticos presentes na política atual do Reino Unido. A crise política ampliou-se em 1683 quando Carlos II fechou o parlamento. Morreu dois anos depois deixando o trono para seu irmão, o Duque de York, Jaime II.

A revolução gloriosa

A ascensão do católico Jaime II suscitou novas discordâncias. Além de não contar com a confiança dos parlamentares de religião Anglicana (da própria Igreja que oficialmente lhe era submissa), pretendia restaurar o absolutismo na Inglaterra e, para isso, buscou o apoio do rei francês Luís XIV. Em 1688 os partidos WHIGS e TORIES, uniram-se para afastar o rei e o “perigo católico”, convidando para assumir o trono da Inglaterra um protestante, o príncipe holandês Guilherme de Orange, genro do rei inglês, casado com Maria, à filha protestante de Jaime II. Guilherme desembarcou na Inglaterra com uma pequena força militar, ocupando Londres sem ter de lutar contra o exército real, enquanto Jaime II se refugiava na França. WHIGS e TORIES exigiram que Guilherme respeitasse o parlamento. Esse episódio ficou conhecido como revolução gloriosa.

Antes mesmo da coroação, Guilherme jurou a declaração dos direitos (BILL OF RIGHTS) em 1689, documento que reduzia drasticamente as funções e direitos reais, encarregando o parlamento do governo efetivo do país – nascia a monarquia parlamentarista inglesa. O teórico do novo modelo político era o filosofo e político inglês John Locke (1632-1704), que afirmava que o Estado existia para garantir a segurança e os direitos individuais (vida, liberdade e propriedade), entendidos como direitos naturais do homem. Esses direitos foram estabelecidos por força de lei e, a partir daí, o absolutismo desapareceu no reino unido.

“As decisões tomadas com a revolução gloriosa (...), firmavam a substituição da monarquia absolutista pela monarquia constitucional ou parlamentarista. Essa revolução teve para a Inglaterra a mesma importância que a revolução de 1789 teria para a França, no que se refere à derrubada do Estado Absoluto e o estabelecimento de condições políticas plenas à burguesia, edificando um Estado burguês, favorável a posterior revolução industrial”. (VICENTINO, Cláudio. HISTÓRIA GERAL. São Paulo: SCIPIONE, 2003, P.220).

O caminho para industrialização e o surgimento dos direitos civis

Com a Revolução Gloriosa, a burguesia inglesa se libertou do Estado absolutista, que com seu permanente intervencionismo era uma barreira para um mais amplo acúmulo de capital. Dessa forma a burguesia, aliada a aristocracia rural, passou a exercer diretamente o poder político através do Parlamento, caracterizando a formação de um Estado liberal, adequado ao desenvolvimento do capitalismo, o que junto a outros fatores, permitirá o pioneirismo inglês na Revolução Industrial em meados do século XVIII.

“A instauração da monarquia parlamentar inglesa e as idéias de J. Locke inspiraram muita gente na Europa e nas Américas. Nas treze colônias, a luta pela independência seria inspirada pelos princípios liberais, assim como muitas idéias dos filósofos iluministas do século XVIII e a própria revolução francesa. O fato de a Inglaterra ter tido uma revolução burguesa tão cedo é uma das explicações para que a revolução industrial tivesse começado naquele pais: no final do século XVIII, instalaram-se centenas de fabricas no reino unido, as primeiras do mundo. O capitalismo estava definitivamente implantado.”. (SCHMIDT, Mário Furley. Op. Cit. P. 243).

Numa visão política do fato, contudo, as revoluções inglesas do século XVII legaram ao mundo em ebulição do século XVIII e ao mundo atual uma cidadania baseada em direitos. Se no absolutismo o poder é absoluto, indivisível e irresistível, para Locke, teórico e político que viveu suas experiências na Inglaterra do século XVII, o poder do Estado “(...) é limitado, divisível e resistível. Foi precisamente na ultrapassagem dessa fronteira que se constituíram os primeiros passos daquilo que chamamos comumente hoje de ‘direitos humanos’. Uma fronteira ultrapassada exatamente em meio ao revolucionários século XVII inglês. Uma fronteira que, ultrapassada, nos abriu a possibilidade histórica de um Estado de direito, um Estado dos cidadãos, regido não mais por um poder absoluto, mas sim por uma carta de direitos, um Bill of Rights. Uma nova era descortinava-se, então, para a humanidade – uma Era dos direitos”. (MONDAINI, Marco. O respeito ao direito dos indivíduos. Publicado em Pinsky, Jaime (Org.). História da cidadania. São Paulo: Contexto, 2008, p. 129).

terça-feira, 11 de maio de 2010

Eugenia: a biologia como farsa

Eugenia, a biologia como farsa.


Por Pietra Diwan


Inglaterra, século XIX. As transformações desencadeadas pela segunda fase da Revolução Industrial alteram profundamente a vida social. O medo burguês da multidão nascente, aliado ao triunfo do discurso científico, encontra na biologia um meio de pôr ordem no aparente caos social: reurbanização, disciplina e políticas de higiene pública deveriam ser aplicadas com a finalidade de prevenir a degradação física dos trabalhadores para evitar prejuízos na economia.

Em meio ao clima de crença inabalável na ciência, o naturalista inglês Charles Darwin publica em 1859 o livro fundador do evolucionismo: A origem das espécies. As descobertas de Darwin mostravam que no mundo animal, na permanente luta pela vida, só os mais bem adaptados sobrevivem e os mais bem “equipados” biologicamente têm maiores chances de se perpetuar na natureza. As teses de Darwin logo são transportadas para outros campos do conhecimento em uma tentativa de explicar o comportamento humano em sociedade. Surge assim o darwinismo social, que apresenta os burgueses como os mais capazes, os mais fortes, os mais inteligentes e os mais ricos.

O cenário estava armado para que o primo de Darwin, o pesquisador britânico Francis Galton, se apropriasse das descobertas do naturalista para desenvolver uma nova ciência. Seu objetivo: o aperfeiçoamento da espécie humana por meio de casamentos entre os “bem dotados biologicamente” e o desenvolvimento de programas educacionais para a reprodução consciente de casais saudáveis. Seu nome: eugenia.

Os métodos propostos pelos entusiastas da nova ciência, porém, não se resumiam à criação de um “haras humano”, povoando o planeta de gente sã, como propunham os defensores da “eugenia positiva”. No outro extremo, a “eugenia negativa” postulou que a inferioridade é hereditária e a única maneira de “livrar” a espécie da degeneração seria utilizar métodos como a esterilização, a segregação, a concessão de licenças para a realização de casamentos e a adoção de leis de imigração restritiva.

Inicialmente com pouca repercussão na Inglaterra, a doutrina começou a ganhar espaço nos meios intelectuais e acadêmicos mundiais a partir do início do século XX. Foi nos Estados Unidos e na Alemanha que as palestras e conferências de divulgação realizadas por Galton tiveram maior repercussão e os princípios da nova ciência começaram a ser colocados em prática. Hoje, quando pensamos em eugenia, é inevitável a associação imediata à Alemanha nazista, mas foram os Estados Unidos que implementaram o mais bem-sucedido e organizado plano de eugenização social da história, que segue ativo até os nossos dias.

Entre o ano de 1905 e a década de 20, instituições eugênicas proliferaram por todo o território americano. A principal delas, o Eugenics Record Office (ERO), foi dirigida pelo geneticista Charles Davenport, o maior representante da eugenia americana. A primeira lei de esterilização americana foi aprovada em 1907, no estado de Indiana, e estima-se que mais de 50 mil pessoas tenham sido esterilizadas entre 1907 e 1949 em todo o país, considerando que a última lei do gênero foi revogada somente na década de 70.

Os estudos médicos apresentados pelo Comitê de Imigração contribuíram para a aprovação do Johnson-Reed Immigration Restriction Act of 1924, lei que restringiu a imigração e acabou com a política open-door (portas abertas) nos Estados Unidos para impedir o “suicídio da raça”. Um gigantesco aparato institucional financiado por grandes corporações industriais divulgou a eugenia aos quatro cantos do mundo. Com o dinheiro do petróleo, a Fundação Rockefeller financiou e apoiou a prática na França, na Suécia e na Alemanha. Apesar de o prestígio da teoria ter entrado em declínio depois dos excessos do nazismo, as instituições eugênicas sobreviveram, ainda que com outros nomes, e muitas delas funcionam até hoje.

A radicalidade alemã

Ao contrário dos Estados Unidos, a eugenia na Alemanha teve vida mais curta, ainda que mais intensa. Apesar de normalmente associada à ascensão de Hitler ao poder em 1933, não é verdadeiro dizer que na Alemanha a doutrina esteve exclusivamente associada à ideologia nazista. Acredita-se que, mesmo sem o Führer, as leis de esterilização teriam sido implantadas no país. Aliás, a lei de 1933 que legalizou a prática foi inspirada na legislação da Califórnia, o estado que mais esterilizou nos Estados Unidos.


A insalubridade da vida dos trabalhadores de Londres no século XIX inspirou Francis Galton a desenvolver uma teoria de aperfeiçoamento racial

É verdade, no entanto, que sob o nacional-socialismo a prática assumiu sua faceta mais radical. Centenas de milhares de pessoas foram esterilizadas compulsoriamente e mais de 06 milhões perderam a vida em nome da higiene da raça. Estima-se que mais de 1.700 tribunais, entre 1934 e 1945, aprovaram cerca de 400 mil esterilizações em território nazista.

Outra prática utilizada por Hitler foi a eutanásia, que foi regulamentada ainda antes do início da Segunda Guerra Mundial. Entre 1939 e o fim da guerra, 250 mil casos de eutanásia foram documentados, entre alemães com problemas mentais e deficiências físicas. Com a organização de um sistema de campos de concentração no início da década de 40, judeus, ciganos, homossexuais e oponentes do regime foram assassinados nas câmaras de gás, por meio de injeções letais ou abandonados à morte por desnutrição.

Os números e os nomes das pessoas que sofreram com a eutanásia selvagem são difíceis de precisar. Existem poucos arquivos sobre essa prática. O Tribunal de Nurembergue estimou a morte de cerca de 270 mil alemães, dentre os quais 70 mil idosos e 200 mil doentes. Além da solução final, que executou mais de 6 milhões de judeus a partir de 31 de julho de 1941, o nazismo esterilizou e matou, sob o argumento da raça e por meio da eugenia, centenas de milhares de pessoas “indesejáveis”. Com o fim da Segunda Guerra Mundial a eugenia foi “enterrada viva” na Alemanha a partir de 1948.

Não foi, porém, apenas o nazismo germânico que adotou a higiene da raça como política de Estado. A “ciência” também encontrou um campo fértil nos países escandinavos. Na Dinamarca, Suécia, Noruega e Finlândia a eugenia pode ter sido mais branda, mas certamente não foi menos efetiva. Implantada como política pública pelo modelo local do sistema de bem-estar social, a versão escandinava foi cientificamente controlada pelo Estado com a finalidade de eliminar os caracteres indesejáveis da sociedade. Entre as décadas de 30 e 60 estima-se que a Suécia tenha esterilizado cerca de 39 mil pessoas; a Noruega, 7 mil; a Finlândia, 17 mil e a Dinamarca, 11 mil.

A eugenia tampouco ficou restrita às nações que seriam o berço da “raça branca”. Na Ásia, China e Japão desenvolveram exemplos práticos – e recentes – de tentativas de aperfeiçoamento racial. Durante o período Meiji (1868-1912), o Japão implantou técnicas de melhoramento da raça através de um programa para a produção de futuros samurais. Mais tarde, em 1948, a Eugenic Protection Law (Lei de Proteção Eugênica), formulada sob inspiração da lei de esterilização alemã de 1933, foi instaurada no Japão sob ocupação americana no pós-guerra a fim de prevenir a reprodução dos “indesejados”, incluindo pessoas com doenças infecciosas.

A China, por outro lado, tem fama de praticar a eugenia atualmente. Uma lei de 1995, que atinge 70% da população chinesa, prevê exames pré-nupciais para o controle de doenças genéticas, infecciosas ou mentais. Quando os médicos consideram inapropriada a procriação do casal ou é detectada alguma doença pré-natal no feto, são receitados o aborto e a esterilização voluntária. No entanto, a eugenia na China não é uma novidade. Desde os tempos imperiais há uma preocupação com a descendência da raça chinesa. Para essa cultura milenar, os ancestrais são sempre os responsáveis pelas gerações futuras, e conceber uma criança com qualquer tipo de deficiência significa uma falha moral de seus pais, o que é inconcebível nesse modelo de sociedade.

Nem mesmo a América Latina, região mestiça por excelência, escapou da eugenia. Muito pelo contrário. Por aqui, o desejo de transformação racial esteve diretamente ligado à formação das identidades nacionais e a uma vontade de desfazer a opinião negativa dos europeus sobre a realidade racial de diversos países. Para os antigos colonizadores, a Argentina significava o “melhor do pior da Europa”; o México, com sua maioria racial de índios e mestizos, afastava-se da norma branca européia; e, finalmente, o Brasil, com seu clima tropical, estimulava a miscigenação e, portanto, sua deterioração racial. Dessa forma, a América Latina abraçou a nova teoria científica de melhoramento racial para resolver o problema da miscigenação, até então muito malvisto pelos europeus.

Ligações com o fascismo

O mais importante representante da eugenia na Argentina foi o médico Victor Delfino, que fundou a Sociedad Argentina de Eugenesia em 1918. A conjuntura em que a prática floresceu na Argentina é caracterizada por uma crise econômica e uma reorientação política radical rumo à extrema direita que tornou o país altamente xenófobo. Do ponto de vista da composição racial, a Argentina era (e ainda é) um país branco; quase metade dos imigrantes que entraram no país, entre 1890 e 1930, era de origem italiana; somente 2% da população do país era negra e os indígenas eram marginalizados. Efetivamente, a Argentina foi o único país da América Latina a realizar o branqueamento racial. A eugenia platina teve uma conexão forte com o fascismo italiano. Nossos vizinhos transpuseram as idéias de Mussolini para a sua realidade e passaram a defender uma argentinidad como parte da herança latina e mediterrânea.

O México praticou um tipo de eugenia diametralmente oposto ao da Argentina. Foi o único país a ter uma legislação regulamentando a esterilização, medida rejeitada pelo restante da América Latina, adotada como parte do programa de saúde pública implantado pelo governo que assumiu o poder após o fim da Revolução Mexicana em 1917. Quanto à composição racial mexicana, sua população era principalmente índia e mestiça, sem traços marcantes de imigração. Em 1911, a população estava dividida da seguinte forma: 35% de indígenas; 50% de mestiços; 15% de criollos (brancos hispânicos). A década de 30 no México é marcada pela intensificação do pensamento nacionalista que afirma o discurso da raça na tentativa de exaltar o mestiço e eliminar da nacionalidade mexicana, pelo processo de eugenia negativa, a raça negra. O caminho encontrado foi a imigração restritiva. Para os eugenistas, essas raças se reproduziam mais que os índios e os mestiços.

A eugenia brasileira, por sua vez, surgiu em resposta às teorias degeneracionistas européias do século XIX que criticavam a miscigenação dos trópicos. Apesar do paradoxo racial, implantar a eugenia no Brasil era visto por cientistas e intelectuais do período como um caminho para elevar um país povoado por uma legião de jecas. Antes de 1917, houve algumas iniciativas esparsas que mencionavam a eugenia como um caminho possível, mas foi com o médico paulista Renato Kehl que a teoria adquiriu adeptos e defensores.

O entusiasmo generalizado causado por uma conferência realizada por Kehl na Associação Cristã de Moços de São Paulo impulsionou a fundação da Sociedade Eugênica de São Paulo (Sesp), em 1918. A primeira associação do tipo na América Latina contou com cerca de 140 associados. Entre eles estavam o fundador da Faculdade de Medicina de São Paulo, Arnaldo Vieira de Carvalho, o sanitarista Arthur Neiva, o psiquiatra Franco da Rocha e o educador Fernando de Azevedo.

Em 1920, Kehl muda-se para o Rio de Janeiro e ao lado de outros médicos psiquiatras participa da fundação da Liga Brasileira de Higiene Mental (LBHM), instituição cujo intuito era combater os “fatores comprometedores da higiene da raça e a vitalidade da Nação”. Miguel Couto, presidente da Faculdade Nacional de Medicina do Rio de Janeiro, Carlos Chagas, diretor do Instituto Oswaldo Cruz, e Edgar Roquette-Pinto, diretor do Museu Nacional, estavam entre os mais de 120 associados da LBHM.

No início da década de 30, boa parte da LBHM passou a defender abertamente a radicalização das ações “antidegenerativas” como a esterilização, mas alguns membros da associação reagiram à proposta. Edgar Roquette-Pinto se colocou contra a segregação e a favor da miscigenação. Adepto da eugenia positiva, profilática e não radical, para ele a solução para o problema nacional era a higiene e não a raça. Insatisfeito com as divergências na LBHM, Renato Kehl organizou então a Comissão Central Brasileira de Eugenia (CCBE) sob inspiração da Comissão da Sociedade Alemã de Higiene Racial, com a qual se correspondia. Por meio da CCBE, Kehl se aproximou de Oliveira Vianna, então consultor jurídico do governo provisório de Getúlio Vargas, e integrou um grupo designado pelo recém-fundado Ministério do Trabalho para pensar os problemas da imigração no Brasil a partir de 1932.

Os resultados dos trabalhos da Comissão de Imigração liderada por Oliveira Vianna contribuíram para a formulação da Lei de Restrição à Imigração. Mais política do que racial, a medida barrou a entrada no Brasil de asiáticos e judeus denominados pelos eugenistas como não-assimiláveis. Essa postura negativa estava então alinhada com a ideologia nazi-fascista e com as políticas imigratórias dos Estados Unidos. Legalizada em 1934, foi retirada da Constituição após o golpe do Estado Novo, em 1937, embora o comprometimento com a eugenia ainda fosse uma política de Estado, que só recuaria após a adesão do Brasil ao bloco dos Aliados na Segunda Guerra Mundial, em agosto de 1942.

Seja no Brasil de Vargas ou na Alemanha de Hitler, o fato é que durante as primeiras décadas do século XX a eugenia exerceu forte influência sobre governos e intelectuais dos quatro cantos do mundo. A prática assumiu uma multiplicidade de facetas que particulariza cada análise de acordo com a época e o país. Há algo, porém, comum aos diversos eugenistas: todos tinham em vista a substituição das leis de proteção social por outras que favorecessem a reprodução de bons elementos na sociedade, utilizando o rótulo de ciência para um projeto essencialmente político e ideológico.



Pietra Diwan é mestre em história pela PUC-SP e autora do livro Raça pura: uma história da eugenia no Brasil e no mundo (Contexto, 2007)



Disponível em

http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens/eugenia_a_biologia_como_farsa_8.html

segunda-feira, 3 de maio de 2010

História das doenças: UFPB e UFCG

Os leprosos na Idade média

Acredita-se que a lepra havia sido introduzida na Europa Ocidental através das Cruzadas, devido ao contato com o leste onde era endêmica. Porém, este pensamento tem sido contestado pelos estudos mais recentes, na medida em que existem evidências da presença dos leprosos na Europa Ocidental antes das Cruzadas.

Por falta de um conhecimento mais específico sobre as doenças, havia na Idade Média uma dificuldade de se diagnosticar a lepra. Por isso, ela era muitas vezes confundida com outros tipos de enfermidades, principalmente com as de pele e venéreas. Partindo desta premissa, a segregação dos leprosos pode ser vista também como uma maneira, empregada pelos homens da Idade Média, de afastar da sociedade um símbolo vivo da lascívia e da promiscuidade. Neste sentido, a lepra era tida como um símbolo do pecado, como um sinal externo e visível de uma alma corroída pelo erro e, em especial, pela transgressão sexual.

A identificação do leproso era feita, inicialmente, através da denúncia. Qualquer pessoa que notasse uma doença de pele num vizinho, parente ou cônjuge, deveria indicá-lo à autoridade secular ou religiosa para que um tribunal fosse convocado.

O doente comparecia perante um júri composto por um médico, um preboste e um padre, que representavam a Ciência, o Estado e a Igreja. A pele do acusado sofria um exame minucioso e precisava passar por vários testes. Um deles afirmava que se pusesse uma pessoa ao luar, de forma que os raios lhe batessem na face, o leproso ficaria marcado por diversas cores, enquanto que o homem saudável pareceria pálido. Um outro dizia que se espalhasse cinzas de chumbo queimado na urina de um leprosos, elas ficariam a boiar, enquanto, normalmente, cairiam no fundo do recipiente.

Com esses tipos de teste, o número de pessoas consideradas leprosas era grande. Os suspeitos podiam contestar, mudar de jurisdição, ou mesmo exigir novos peritos. Mas, uma vez estabelecida a natureza da lepra pelo tribunal, os leprosos eram excluído da comunidade e de toda vida social. Em certos lugares eram realizadas cerimônias macabras que solenizava o dia da separação do leproso da sociedade. Esquematicamente, ela consistia em levar o doente à igreja, em procissão, ao canto do "Libera – me" como para um morto, para a celebração de uma missa que o doente escutava dissimulado sob um cadafalso, sendo depois acompanhado à sua morada. Durante a missa ou à saída da igreja tem lugar um ritual: "o padre deve ter uma pele na mão e com essa pele deve pegar terra do cemitério, três vezes, e pô-la na testa do leprosos, dizendo o seguinte: Meu amigo, é sinal de que estás morto para o mundo e por isso tem paciência e louva em tudo a Deus." A leitura das proibições, como, por exemplo, entrar nos moinhos, tocar nos alimentos e etc. acompanhava a entrega e benção das luvas, da matraca e da caixa das esmolas, elementos que o leproso deveria usar para que assim fossem rapidamente reconhecidos pelos outros membros da sociedade.

Nos leprosários, os doentes eram proibidos de tocar nos suprimento de comida, de andar de pés descalços, de ferver as suas roupas na hora de preparação da comida e de tirar água do poço, pois existia o medo de que suas mãos viessem a infectar as cordas das cacimbas.

As instituição específicas para o tratamento dos leprosos nasceram em um contexto de crescimento das hostilidades para com estes doentes e em meio a convicção de que eles deveriam ser separados do convívio social. Esses estabelecimentos teriam atingido a seu apogeu no final do século XI e início do século XII e o seu declínio no final do século XIII.

O crescimento das fundações de caridade para atender aos leprosos pode ser visto como um aspecto do desenvolvimento do individualismo religioso ( expressão pessoal de piedade ) e também para defender a riqueza, já que a acumulação ficava justificada se, ao menos parte dela, fosse gasta em atividades de caridade. Neste sentido, a Igreja desenvolveu um programa de ação contínuo e corrente para assegurar a segregação efetiva dos leprosos.

Um outro pensamento corrente na idade Média é de que, em certo sentido, os leprosos eram particularmente favorecidos por Deus, porque estavam sofrendo nesta vida, como Cristo havia sofrido. Deste modo, eles já estavam pagando em vida pelos pecados cometidos e quando viessem a falecer iriam direto para o céu. Não podemos esquecer que existia na Idade Média uma preocupação constante com a salvação da alma. Ou seja, a vida depois da morte era tida como certa, sendo assim, os ímpios não herdariam o reino do céu. Tal pensamento torna-se ambíguo, se considerarmos que os leprosos medievais carregavam consigo a marca do pecado e que por isso eram excluídos e segregados.

Para saber mais:

RICHARDS, Jeffrey. Sexo, Desvio e Danação. As Minorias na Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.

LE GOFF, Jacques. As doenças têm História. Lisboa: Terramar, 1996.

GINZBURG, Carlo. História Noturna: Decifrando o Sabá. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

domingo, 2 de maio de 2010

SEXUALIDADE - UFCG E UFPB

História da Sexualidade no Brasil

Resumo

Quando um antropólogo aborda o tema sexualidade, o primeiro mandamento a ser enfatizado é que, enquanto no reino animal irracional as funções sexuais são determinadas fundamentalmente pelo instinto, a sexualidade humana se manifesta através de padrões culturais historicamente determinados, donde sua dinamicidade temporal e diversidade espacial são performáticas. A sexualidade humana é uma construção cultural, tanto quanto os hábitos alimentares e corporais. Nascemos machos e fêmeas e a sociedade nos faz homens e mulheres. Mais ainda: o ser masculino e o ser feminino variam enormemente de cultura para cultura, modificando-se substantivamente ao longo das gerações dentro de uma mesma sociedade. Discutimos neste ensaio basicamente a construção histórica da sexualidade brasileira, destacando a presença primordial de três complexas matrizes sexuais: o modelo sexual hegemônico dos donos do poder, representado pela moral judaico-cristã fortemente marcada pela sexofobia, e os modelos periféricos indígena e africano, dominados por multifacetada pluralidade cultural e grande permissividade relacional. Concluímos mostrando a relação estrutural entre escravidão e o machismo.

Modelo Hegemônico Judaico-Cristão

O traço definidor da moral sexual judaico-cristã é a sexofobia. Diferentemente de outras culturas, onde deuses e sacerdotes praticavam toda sorte de "perversões sexuais" consideradas ou neutras do ponto de vista moral, ou mesmo virtuosas - a religião judaica prima pela dificuldade em conviver com os "vícios da carne". Javé - diferentemente dos Orixás, de Apolo e Tupã, é um deus assexuado. O céu judaico-cristão – tão diverso dos congêneres dos muçulmanos e germanos – é um paraíso assexual, onde os que na terra foram virgens ou celibatários estarão mais próximos do trono do Cordeiro e da Virgem Maria.

Como traços cardeais da cultura sexual abraâmica, salientam-se o tabu da nudez, o machismo, o patriarcado, a monogamia e indissolubilidade do matrimônio como alicerces da família nuclear, a noção de honra e a virgindade pré-nupcial como requisito para as alianças matrimoniais.

Modelo tão rígido comportou, desde os tempos bíblicos, espaço para os desvios, que mesmo castigados alguns até com o apedrejamento ou a fogueira, fizeram parte integrante do modus vivendi de nossos antepassados. Adultério, concubinato, sodomia e violência sexual – todos condenados pelos rabinos e sacerdotes – nem por isto foram completamente eliminados do orbe cristão, e abundam nos arquivos os processos civis e religiosos contra tais pecadores, personagens freqüentes em nosso passado colonial. Uma das representações mentais mais interessantes e persistentes entre nossos antepassados ibéricos transplantada para o Novo Mundo foi o que os teólogos chamavam "heresia contra a fornicação simples" em razão da qual inúmeros colonos de norte a sul do Brasil foram denunciados à Santa Inquisição, por defenderem a proposição herética de que não eram pecado os atos sexuais entre pessoas desimpedidas (que não fossem casadas, virgens ou que tivessem votos religiosos). Outros, igualmente investigados pela sanha inquisitorial, eram acusados de propalarem que "era melhor se casar do que ser padre", em franca oposição ao ensinamento do donzelo Apóstolo Paulo.

Não bastassem as ameaças representadas pelos "heterodoxos" descendentes dos primitivos colonizadores, a moralidade imposta pelo Levítico e Catecismo Romano sofreu seu mais grave embate através do confronto de outros modelos sexuais, aos quais chamamos de "periféricos", posto terem sido tratados sempre como marginais por parte dos donos do poder hegemônico. Referimo-nos às matrizes sexuais indígena e africana.

Matrizes periféricas: Índios e Africanos

É incorreta a suposição de que índios e africanos ostentassem, cada etnia per si, uma conduta sexual homogênea. O correto é falarmos de "sexualidades indígenas" e "sexualidades africanas" posto coexistirem, lado a lado, na Ameríndia e no Continente Africano, centenas e centenas de padrões sexuais completa-mente diversos e às vezes antagônicos. Em comum, podemos detectar duas macro-tendências: a enorme diversidade estrutural destas sexualidades e uma menor rigidez repressiva, levando-se em o conta que se tratam de sociedades ágrafas e por isso, baseadas em tradição oral menos rígida se comparada com sociedades dominadas por códigos e leis escritas - algumas delas, como a judaica, mandamentos escritos em tábuas de pedra e re-veladas pela própria divindade.

Se tomarmos como inspiração a sexualidade dos índios Tupinambá, a primeira constatação, que tanto chocou os cronistas coloniais, é a relação absolutamente neutra que tais silvícolas mantinham com a nudez, além de primarem por desbragada luxúria, falando constantemente entre si de suas "sujidades", incansáveis em procurar variegados gozos eróticos, conhecendo diversos afrodisíacos e magias sexuais, que os cristãos interpretaram como coisas do Diabo. Polígamos, tais nativos praticavam uma espécie de gerontocracia sexual onde os mais velhos guerreiros, aqueles que tinham matado o maior número de inimigos, tinham maior acesso às mulheres mais jovens. Não só os Tupinambá, como diversas outras tribos nas três Américas, abrigavam em suas aldeias grande número de "invertidos sexuais "de ambos os sexos, chamando aos homoeróticos masculinos de "tibira" e às lésbicas de "çacoaimbeguira".

Quanto à sexualidade dos africanos que vieram escravizados para o Novo Mundo, os traços mais comuns, que aproximariam a enorme diversidade cultural das centenas de etnias envolvidas na diáspora negra, seriam, além da poligamia poligínica, a prática de mutilações sexuais geralmente associadas a ritos de iniciação na infância ou puberdade. Se tomarmos como exemplo algumas etnias do antigo Reino de Benin - de onde procedeu a mais importante leva de africanos no último século do escravismo, notamos como elementos característicos de sua sexualidade a grande liberdade sexual das crianças e adolescentes, tolerância à masturbação recíproca, prática da circuncisão dos meninos e clitoridectomia nas donzelas.

"Não há escravidão sem depravação sexual. É da essência mesmo do regime...", dizia Gilberto Freyre, demonstrando cabalmente que a exacerbação erótica observada no Brasil Colonial deve ser explicada não por "defeito" da raça africana, mas pelo abuso de uma raça por outra: "ao senhor branco, e não á colonização negra deve-se atribuir muito da lubricidade brasileira."

O que temos como certo é que o machismo ibérico assumiu - no Novo Mundo, devido às condições demográficas e sociológicas da escravidão, uma feição muito mais agressiva e virulenta do que a observada em Portugal e Espanha à época das Descobertas. Abaixo do Equador, onde os brancos donos do poder representavam por volta de um quarto dos habitantes, somente a extrema violência e o autoritarismo conseguiram manter submissa toda aquela massa populacional de negros, índios e mestiços, infelizes seres humanos tratados a fogo e ferro pela minoria senhorial. Numa sociedade tão marcada pela injustiça social, somente homens ultraviolentos seriam capazes de manter ordem e respeito junto à "gentalha", daí ter-se desenvolvido um código de hipervirilidade, que anatematizava, entre os machos brancos, qualquer conduta ou sentimento "feminino", pois ameaçavam a própria manutenção dessa sociedade estamental e oligárquica. Aí está a raiz do machismo à brasileira, filho bastardo da escravidão.

"Há males que vêm para bem", diz o brocardo popular, e no caso do regime servil, podemos pinçar alguns elementos que influenciaram positivamente nossa ideologia e práticas sexuais modernas. Embora não possamos concordar que nosso país seja um exemplo de "democracia racial', dadas as desigualdades sociais ainda hoje dominantes em nosso meio, não há como negar que as interações sexuais inter-raciais se deram no Brasil com muito maior freqüência, com menos violência e com maior "cordialidade" do que nos demais países escravistas. Diferentemente de outras sociedades, nas quais os senhores manifestavam nojo e repulsa sexual vis-à-vis às fêmeas das "raças inferiores", entre nós desenvolveu-se um erotismo mestiço que fez da mulata hoje, e da negra "mina" no século XVIII, o modelo mais cobiçado de parceira sexual. Como dizia no século passado Charles Expilly, na sua instigante obra Costumes e Mulheres do Brasil, "aquele que sentiu duas vezes o cheiro acre, mas embriagador, de uma negra, achará, desde então, muito desenxabido o cheiro que exala a pele da mulher branca..." Segundo esse autor, tratava--se tal enunciado de um "axioma português".

Um segundo aspecto positivo, herança da miscigenação e hibridismo pluricultural, é a influência das matrizes periféricas de nossa sexualidade, na alforria dos brasileiros da rigidez do Levítico e do Catecismo Romano. Um amoralismo mestiço e crioulo domina nossa cultura sexual, destacando-se o Brasil, no cenário mundial, pelo exibicionismo de nossas mulheres inventoras da tanga, pela exportação de travestis que causam furor entre franceses e italianos, pela extravagância sensual de nossos desfiles de escola de samba, pelo remelejo dos bumbuns de homens e mulheres no pagode. Não é por menos que nosso país ocupa o segundo lugar em casos de Aids no ranking mundial, com uma estimativa de mais de meio milhão de pessoas infectadas, 50% das quais por via sexual.

UFCG - História do cotidiano

O amor em grafites na Pompéia imperial



Ana Lucia Azevedo

O amor é imortal. Pode sobreviver a tudo, até mesmo a cataclismos e ao passar dos milênios. Há um lugar em que essa máxima, já tão clichê, se concretiza. É Pompéia, na Itália. A fúria do vulcão Vesúvio selou o destino da cidade há dois mil anos mas também eternizou sob cinzas e lava as paixões de seus habitantes.

As histórias de amor dos homens e mulheres de Pompéia são mais que lembranças. Estão gravadas em pedra, imutáveis. A declaração de um certo Marcos à sua amada Espedusa ainda pode ser lida com nitidez. Assim, como o desesperado pedido de Sucesso pelo amor de Híris. Marcos, Espedusa, Híris, Sucesso e tantos outros tiveram suas vidas destruídas pelo vulcão. Mas continuam a ser personagens de romance, cujo estudo dá novas cores à vida diária da Roma antiga.

O amor em Pompéia está em grafites — do latim graphium, um instrumento usado para fazer inscrições em paredes. Há centenas de grafites amorosos por toda cidade, cuja protetora não era outra senão Vênus, a deusa do amor.

Longe de qualquer parentesco com as pichações que sujam as cidades modernas, os grafites de Pompéia eram o jornal da cidade. Tinham de tudo, de críticas a políticos a brigas de vizinhos e versos românticos. Foi nesses últimos que a historiadora Lourdes Gazarini Conde Feitosa encontrou informações para sua tese de doutorado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Lourdes investigou as relações amorosas dos moradores de Pompéia para estudar o povo romano. Não a rica elite, mas a miríade anônima de trabalhadores, escravos, libertos e estrangeiros.

— A maioria das informações sobre a história social da Roma antiga diz respeito às elites, aos ricos e poderosos. Eles escreviam ou eram o tema dos relatos. O povo romano sempre foi um ilustre desconhecido — diz Lourdes, que baseou seu trabalho no “Corpus Inscriptionum Latinarum”, uma compilação dos grafites pompeianos, já que muitos dos grafites foram removidos para serem preservados.

O povo se expressava em grafites e em Pompéia a mesma tragédia que arrasou a cidade congelou no tempo dramas e alegrias cotidianas de comerciantes, taberneiros, advogados, soldados e tantos outros. Conquistada por Roma em 80 a.C., Pompéia ainda guardava muito da cultura osca (seu povo original) e era um lugar de passagem de gregos, judeus, árabes e outros povos. Muitos deles exprimiram nas paredes o que lhes dizia o coração.

— Foi difícil traduzir os grafites porque muitos misturavam o latim vulgar, mais difícil de traduzir, com o osco, a língua original de Pompéia — observa Lourdes, que explica que os grafites datam em sua maioria do período entre os anos 62 e 79, quando a cidade foi sepultada pelo Vesúvio para só ser redescoberta no século XVIII.

Imaginamos que os grafites datam do período posterior a 62 porque naquele ano houve um forte terremoto, que destruiu muita coisa — comenta a pesquisadora.

A vida amorosa dos romanos sempre foi estereotipada. Ora é retratada como devassa, ora como casta. — Isso podia valer para as elites em determinados momentos de Roma — esclarece Lourdes.

Para o povo, verificou ela, a história era outra. E a maior surpresa foi descobrir que em se tratando de amor, os pompeianos não eram diferentes do que hoje consideramos corriqueiro.

— É complicado fazer esse tipo de comparação porque se tratam de épocas e valores diferentes. Mas, sim, de certa forma, eles amavam como nós — diz.

O estudo, apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (Fapesp), deu às mulheres de Pompéia um lugar menos submisso do que o imaginado para as romanas de sua época. Muitas das mensagens — algumas delas convites sedutores — foram deixadas por mulheres.

— O estudo sugere que entre o povo havia mais igualdade entre os sexos — frisa Lourdes, que se prepara para dar continuidade à pesquisa. Material não faltará, pois um terço da cidade ainda precisa ser escavado.

(© O Globo On Line)



O fim trágico da cidade

Aristocratas romanos e escravos estrangeiros, todos tiveram o mesmo fim no trágico agosto de 79, quando o Vesúvio explodiu numa de suas mais terríveis erupções. Na época, Pompéia tinha entre 15 mil e 20 mil habitantes e pesquisadores acreditam que inicialmente nem todos levaram os primeiros alertas do vulcão a sério. Terremotos e erupções menores do Vesúvio já faziam parte da história da cidade. Mas em 24 de agosto de 79, uma chuva de cinzas e pedra-pomes e sucessivos tremores transformaram o dia em noite e destruíram muitas casas.

Foi apenas o início. Na manhã do dia 25, quando a cidade já estava sob quase dois metros de entulho vulcânico, o Vesúvio despejou toda a sua fúria em forma de fluxo piroclástico, ou nuvem ardente: um jato de gases quentes, a uma temperatura de 600 graus Celsius. A nuvem varreu Pompéia, Herculano e uma área de quilômetros em volta do vulcão. Moradores em fuga foram mortos por asfixia e queimaduras. Outros sufocaram ainda em casa.

Uma nova nuvem ardente no final daquele dia matou os que haviam sobrevivido à primeira e enterrou Pompéia sob quatro metros de cinzas e pedras.

(© O Globo On Line)

A paixão expressa nas paredes de Pompéia

CONSELHOS:
“Viva quem ama, morra quem nãosabe amar! Morra duas vezes maisquem proíbe o amor!”

“Se alguém aqui repreender os enamorados, que faça também cessar os ventos e proíba correrem as águas de uma fonte”

“Quem ama não deve banhar-se em fontes quentes, pois ninguém que foi escaldado pode amar as chamas”

FIDELIDADE:
“Ametusto não vive sem a sua Valentina”

“Víbio Restituto aqui dormiu sozinho e lembrou-se ardentemente de sua amada Urbana”

“Segundo com Primigênia, em comum acordo”

“Balbo e Fortunata, os dois esposos”

“Lúcio Clódio Varo e sua mulher Pelagia”

“Estáfilo aqui com Quieta”

“Aqui habitamos. Que os deuses nos façam felizes”

“A Dáfnico, com sua querida Felícula, deseja isto: Bem a Dáfnico, bem a Felícula. Que ambos tenham êxito”

AMOR NÃO CORRESPONDIDO:
“O tecelão Sucesso ama a escrava taberneira Híris, a que não quer saber dele, mas ele pede que ela tenha dó dele. Responde, rival. Saudações. Intervém porque é um invejoso! Não queira bancar o engraçadinho, seu mau caráter galanteador! ”

“Marcelo ama Prenestina e não é correspondido”

CITAÇÃO DE OVÍDIO:
“Todo enamorado é um soldado!”

SÚPLICA:
“Secundo a sua querida Prima, uma saudação cordial. Peço, senhora, me ame!”

“A minha querida Grata, com felicidade eterna. Te peço, senhora minha, por Vênus, que você não se esqueça de mim. Me tenha sempre em teus pensamentos”

MULHERES APAIXONADAS:
“Digo a você: desejo teu doce vinho e desejo muito. Colpurnia te diz. Saudações!”

“Rômula, aqui, com seu querido Estáfilo, com calma”

“Vênus, efetivamente, é uma desencaminhadora porque deseja aquele que é do meu próprio sangue, e provocará tumulto nos caminhos; que ele escolha bem por si mesmo para navegar com êxito, o que também deseja sua amada Arione”

“Mete Atelana, de Comínio, ama Cresto. Que Vênus pompeiana seja propícia no coração de ambos e que sempre vivam em harmonia”

DECLARAÇÕES:
“Se tem alguém que não viu a Vênus que pintou Apeles, que olhe a minha garota: é tão bonita quanto ela!”

“Élio Magno saúde a sua amada Plotila”

“Marcos ama Espedusa”

(© O Globo On Line)

História do cotidiano: UFCG

AS FESTAS IMPERIAIS NA ROMA ANTIGA: os decennalia e os jogos seculares de Septímio Severo.


Texto de Ana Teresa Marques Gonçalves, para MNEME, Revista de humanidades



“O espetáculo é uma necessidade intrinsecamente associada ao exercício do poder: o monarca deve deslumbrar o povo (...). O cerimonial associado ao monarca tem por função tornar visível o imaginário do corpo simbólico (...). A arte clássica tem por função traduzir em imagens o corpo imaginário do rei, através das referências mitológicas das quais se nutre a monarquia. Longe de serem autônomas, as diferentes artes só encontram sua vitalidade no discurso político que as organiza” (Apostolidès, 1993:10, 15 e 70).

A realização de cerimônias públicas, de momentos festivos, é uma forma sofisticada muito antiga de comunicação com objetivo político, pois as festas ajudam a manipular a opinião pública, a persuadir através de imagens e a legitimar o mando, sendo, deste modo, um dos vários instrumentos de poder. No desenrolar das festas, divulgam-se mensagens, imagens, símbolos e mitos, que auxiliam no controle social. A linguagem festiva é, sobretudo, imagética, o que explica seu alto poder de persuasão, de busca de consentimento e de apoio ao poder, garantindo uma impressão de unidade, fundamental para a manutenção do comando. O poder utiliza meios espetaculares para marcar sua entrada na história (comemorações, festas de todo o tipo, construção e reconstrução de monumentos). As manifestações do poder não se coadunam com a simplicidade; a grandeza, a ostentação e o luxo as caracterizam. As emoções tendem a se exacerbar nos espetáculos festivos organizados pelos poderosos. As imagens utilizadas nas festas marcam a identidade dos regimes e dos espetáculos do poder, realizados com o objetivo de mostrar grandiosidade e força política. Nenhum sistema político é mudo. Um poder que não fala pelo décor, pela mise-en-scène, perderia a adesão do grupo de apoio, pois a persuasão reforça a sujeição. Portanto, as festas são signos e fazem parte de um ritual: não há sociedade sem ritual e não há ritual sem festas, pois elas ajudam a legitimar o regime (Capelato, 1998: 19-59).

O ritual pode ser entendido como um conjunto de atos formalizados, expressivos, detentores de uma dimensão simbólica. Ele é caracterizado por uma configuração espaço-temporal específica, pelo recurso a uma série de objetos, por sistemas de comportamento e de linguagem específicos e por sinais emblemáticos cujo sentido codificado constitui um dos bens comuns de um grupo. O ritual insiste na dimensão coletiva, isto é, ele faz sentido para os que o partilham. Ele tem eficácia social, pois ordena a desordem, dá sentido ao acidental, cria situações de adesão e regula conflitos. A festa é antes de tudo um ato coletivo, com um lado sagrado e outro leigo de puro divertimento, e serve ao poder, que deve afirmar-se regularmente no decurso de grandes cerimônias (Segalen, 2000:23 e 73-74). Como nos lembra J. Arce, o ritual não é a máscara do poder, mas é em si mesmo uma forma de poder (Arce apud: Teja, 1993:642). E os primeiros governantes Severos souberam perceber a importância das festas e dos rituais para a manutenção de seu poder.

No Debate de Agripa e Mecenas, descrito por Dion Cássio, Mecenas adverte o Imperador Otávio Augusto: “Decore esta capital com público descuido com relação aos custos e torne-a mais magnífica com festivais de todos os tipos” (Dion Cássio, LII, 31.1). Nesta sucinta passagem, vemos a importância das obras públicas e das festividades para a legitimação do poder do Príncipe, desde os primórdios do Principado como nova forma de governo.

As festas serviam de cenário para a apresentação das boas qualidades, da imagem idealizada do soberano. Nos momentos festivos, ele era a imagem da generosidade, ao promover distribuições de dinheiro e/ou alimentos, da força, ao ser aclamado pelas legiões e pela plebe urbana de Roma ou das cidades provinciais, do pontificato, ao realizar importantes ritos religiosos, responsáveis por garantir o apoio das divindades à continuidade do Império.

Duas grandes cerimônias públicas marcaram o governo de Septímio Severo: os Jogos Seculares, que comemoravam a Fundação de Roma, e os decennalia do Imperador, isto é, a comemoração dos dez anos de governo do Príncipe. Como fundador de uma nova dinastia, após um período de marcante guerra civil, Severo sentiu a necessidade de expor publicamente sua vitória sobre os outros concorrentes ao comando imperial e a imagem de unidade, que devia compor o cenário político romano. E a realização de festas era uma forma tradicional de demonstrar a potência, a importância e a soberania de Roma e de seus Imperadores.

Em 202 d.C., Severo abriu oficialmente em Roma as suas festas decenais. Dion Cássio nos ensina que os jubileus decenais dos Imperadores tiveram sua origem no governo de Otávio Augusto. Este Príncipe havia recebido do Senado e do povo romano a honra de ter um imperium legal por dez anos, vendo-o renovado por mais dez anos e assim sucessivamente. Cada uma destas renovações legais dava lugar à celebração de uma grande festa. A prática da renovação decenal do imperium pelo Senado foi abandonada por Tibério, mas não a festa e a comemoração de pelo menos dez anos no poder (Dion Cássio, LIII, 16.2-3). E foi assim, separada da concessão do imperium, que a festa tradicional chegou aos governos dos Severos.

Anualmente, celebrava-se em todo o Império, por intermédio de aclamações, o dia de aniversário da recepção do imperium pelo Príncipe, os chamados dies imperii. Porém, as festas denominadas de decennalia tinham outra amplitude. Davam lugar a cerimônias e jogos espetaculares e eram comemoradas com a construção de grandes obras públicas. Eram sempre realizadas em Roma com a presença do Imperador. A festa decenal era realizada ao início do décimo ano e não ao seu fim; devido a essa prática tradicional, as festividades de Septímio foram em 202 d.C. e não em 203 d.C., como afirmam alguns autores, já que recebeu o título de imperator (Lesuisse, 1961:415-428 e McFayden, 1920:60-67) e o reconhecimento do Senado pela primeira vez em 193 d.C. (Chastagnol, 1984:93).

Reflexão importante

Dos ficantes aos namoridos




Se você é deste século, já sabe que há duas tribos que definem o que é um relacionamento moderno.



Uma é a tribo dos ficantes. O ficante é o cara que te namora por duas horas numa festa, se não tiver se inscrito no campeonato “Quem pega mais numa única noite”, quando então ele será seu ficante por bem menos tempo — dois minutos — e irá à procura de outra para bater o próprio recorde. É natural que garotos e garotas queiram conhecer pessoas, ter uma história, um romance, uma ficada, duas ficadas, três ficadas, quatro ficadas... Esquece, não acho natural coisa nenhuma. Considero um desperdício de energia.



Pegar sete caras. Pegar nove “mina”. A gente está falando de quê, de catadores de lixo? Pegar, pega-se uma caneta, um táxi, uma gripe. Não pessoas. Pegue-e-leve, pegue-e-largue, pegueeuse, pegue-e-chute, pegue-e-conte-para-os-amigos.



Pegar, cá pra nós, é um verbo meio cafajeste. Em vez de pegar, poderíamos adotar algum outro verbo menos frio. Porque, quando duas bocas se unem, nada é assim tão frio, na maioria das vezes esse “não estou nem aí” é jogo de cena. Vão todos para a balada fingindo que deixaram o coração em casa, mas deixaram nada. Deixaram a personalidade em casa, isso sim.



No entanto, quem pode contra o avanço (???) dos costumes e contra a vulgarização do vocabulário? Falando nisso, a segunda tribo a que me referia é a dos namoridos, a palavra mais medonha que já inventaram. Trata-se de um homem híbrido, transgênico.



Em tese, ele vale mais do que um namorado e menos que um marido. Assim que a relação começa, juntam-se os trapos e parte-se para um casamento informal, sem papel passado, sem compromisso de estabilidade, sem planos de uma velhice compartilhada — namoridos não foram escolhidos para serem parceiros de artrite, reumatismo e pressão alta, era só o que faltava.



Pois então. A idéia é boa e prática. Só que o índice de príncipes e princesas virando sapo é alta, não se evita o tédio conjugal (comum a qualquer tipo de acasalamento sob o mesmo teto) e pula-se uma etapa quentíssima, a melhor que há.



Trata-se do namoro, alguns já ouviram falar. É quando cada um mora na sua casa e tem rotinas distintas e poucos horários para se encontrar, e esse pouco ganha a importância de uma celebração.



Namoro é quando não se tem certeza absoluta de nada, a cada dia um segredo é revelado, brotam informações novas de onde menos se espera. De manhã, um silêncio inquietante. À tarde, um mal-entendido. À noite, um torpedo reconciliador e uma declaração de amor.



Namoro é teste, é amostra, é ensaio, e por isso a dedicação é intensa, a sedução é ininterrupta, os minutos são contados, os meses são comemorados, a vontade de surpreender não cessa — e é a única relação que dá o devido espaço para a saudade, que é fermento e afrodisíaco. Depois de passar os dias se vendo só de vez em quando, viajar para um fim de semana juntos vira o céu na Terra: nunca uma sexta-feira nasce tão aguardada, nunca uma segunda-feira é enfrentada com tanta leveza.



Namoro é como o disco “Sgt. Peppers”, dos Beatles: parece antigo e, no entanto, não há nada mais novo e revolucionário. O poeta Carlos Drummond de Andrade também é de outro tempo e é para sempre. É ele quem encerra esta crônica, dando-nos uma ordem para a vida: “Cumpra sua obrigação de namorar, sob pena de viver apenas na aparência. De ser o seu cadáver itinerante".



Martha Medeiros